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A playlist de Dilma Rousseff

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Que tal incrementar a lista de sugestões musicais que Dilma Rousseff oferece para seus seguidores? Toda manhã, o perfil SiteDilmaRousseff sugere uma canção brasileira para os seus mais de 260 mil seguidores no Facebook, acompanhado da hashtag #BOMDIAPRAVOCÊ. Na playlist presidencial, tem Tim Maia, Jamelão, Ivan Lins, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Jamelão, Luiz Gonzaga, Lenine, Marisa Monte, Legião Urbana, entre outros. Que outras canções de bandas e intérpretes brasileiros a presidente poderia indicar?

As sugestões oficiais, claro, não são de Dilma, mas da equipe da presidente. A página é administrada pelo Partido dos Trabalhadores e faz parte da estratégia de fazer Dilma ocupar espaço nas redes sociais. É mais impessoal que o perfil @dilmabr, do Twitter. E nada muito revelador.

É uma ação recente. Começou no dia 30 de dezembro, com “Tente Outra Vez”, de Raul Seixas. No início, vinha acompanhada de uma frase de auto-ajuda. Na do roqueiro baiano, foi esta: “Bom dia pra você que acredita que é de batalhas que se vive a vida, como diz a canção do inesquecível Raul Seixas!”. Para desejar um Feliz Ano Novo, com “Carinhoso” tocada por Yamandú Costa, o perfil dizia: “Bom dia pra você que acordou com aquela sensação de que esse ano será maravilhoso”. As frases logo foram deixadas de lado, mas as indicações não falham um dia. Nesta sexta-feira, é a versão ao vivo de “Eu Sei Que Não Sei Quase Nada Do Mar”, com Maria Bethânia.

Dilma
Assim que assumiu, em 1º de janeiro de 2011, Dilma recorreu pouco às redes sociais. Só mudou de ideia depois das manifestações de junho de 2013, quando a equipe de comunicação do governo decidiu usar esse espaço. Mas, mesmo assim, se comunicar pela e com a música (e, de tabela, a cultura) nunca foi o forte da presidente. Em outubro do ano passado, a equipe do Facebook lembrou do centenário de Vinicius de Moraes. Em agosto, falou da sanção da Lei 12.853, que organiza a nova gestão de direitos autorais no Brasil. E não passou muito disso.

Segue abaixo a playlist presidencial:

“Eu Sei Que Não Sei Quase Nada Do Mar” – Maria Bethânia
“Não Quero Dinheiro (Só Quero Amar)” – Tim Maia
“Marcha Da Quarta-Feira De Cinzas” – Toquinho & Vinícius
“Nervos De Aço” – Paulinho Da Viola
“Vitoriosa” – Ivan Lins
“Vai Embora Tristeza” – Arlindo Cruz
“Matriz Ou Filial” – Jamelão
“Grand’hotel” – Paula Toller


“Milagres Do Povo” – Caetano Veloso
“Canta Canta, Minha Gente” – Martinho Da Vila
“Pais E Filhos” – Legião Urbana
“Gostava Tanto De Você” – Tim Maia
“Terra” – Caetano Veloso
“Pavão Misteriozo” – Ednardo
“Estácio Holly Estácio” – Luiz Melodia
“Sonhos” – Peninha
“Espelhos D’água” – Jorge Aragão e Emílio Santiago


“Não É Fácil” – Marisa Monte
“Colombina” – Ed Motta
“Timoneiro” – Paulinho Da Viola
“Meu Amigo, Meu Herói” – Zizi Possi e Gilberto Gil
“Força Estranha” – Caetano Veloso
“Respeita Januário” – Luiz Gonzaga
“Papel De Pão” – Jorge Aragão
“Com Açúcar, Com Afeto” – Fernanda Takai
“Desafinado” – João Gilberto
“Esotérico” – Gilberto Gil
“Amado” – Vanessa Da Mata
“Mormaço” – Alcione
“João Valentão” – Dorival Caymmi
“Mucuripe” – Fagner


“Sentado À Beira Do Caminho” – Erasmo Carlos
“O Segundo Sol” – Cássia Eller
“Chuva No Brejo” – Marisa Monte (part. Moraes & Davi Moreira)
“Tom Maior” – Martinho Da Vila
“A Lua” – MPB4
“País Tropical” – Jorge Ben Jor
“Pra Você Guardei O Amor” – Nando Reis e Ana Cañas
“O Bêbado E A Equilibrista” – Elis Regina
“Noites Cariocas” – Jacob Do Bandolim
“Pedacinhos Do Céu” – Waldir Azevedo
“Todas Elas Juntas Nu” – Lenine
“Quantas Lágrimas” – Manacéa & Paulinho Da Viola
“Segue O Seco” – Marisa Monte
“Carinhoso” – Yamandú Costa


“Tente Outra Vez” – Raul Seixas


Gilbertos contradição

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Gilbertos SambaAos 71 anos, Gilberto Gil aprofunda a jornada rumo às próprias origens, em sequência aos mergulhos anteriores nas obras lapidares de Luiz Gonzaga (em 2001) e Bob Marley (em 2002). O homenageado da vez é o conterrâneo baiano João Gilberto, num disco de composições de autorias variadas batizado Gilbertos Samba.

Desde antes de se ter tornado ministro da Cultura, o ponta-de-lança tropicalista anunciava que faria um disco de sambas. E o fato de este, quando concretizado, ser um álbum feito predominantemente de canções que João interpretou define o recorte ideológico a que Gil submete o gênero musical tido como predominantemente brasileiro. Samba, para Gilberto(s), é o que vem ao mundo filtrado e nutrido pela bossa nova.

Se é para falar de origens, parece haver raízes profundas na distância conceitual que Gil manteve e mantém dos modos sambistas de Cartola ou Nelson Cavaquinho ou Clementina de Jesus ou Paulinho da Viola ou Martinho da Vila ou Alcione ou Leci Brandão – a não ser que passem, antes pelo filtro baiano-carioca do triunvirato João-Tom JobimVinicius de Moraes.

A peleja remonta, no mínimo, à época do AI-5 e do exílio que quebrou a tropicália em dois (se não muitos) pedaços, entre 1968 e 1969 e além. Expulso do Brasil pelo comando da ditadura civil-militar, em importante medida devido à rebelião comportamental que protagonizava, Gil ainda não se acostumara a domar a própria rebeldia em 1970, quando publicou no tabloide O Pasquim um artigo chamado “Recuso + aceito = receito” (leia a íntegra aqui).

Ali, ele se rebelava contra um prêmio Golfinho de Ouro que o Museu da Imagem e do Som (MIS) queria lhe pregar, em suposta honra ao samba “Aquele Abraço”  (1969), o canto de cisne pré-exílio do Gil tropicalista. “Que fique claro para os que cortaram minha onda e minha barba que ‘Aquele Abraço’ não significa que eu tenha me ‘regenerado’, que eu tenha me tornado ‘bom crioulo puxador de samba’ como eles querem que sejam todos os negros que realmente ‘sabem qual é o seu lugar'”, escreveu n’O Pasquim, num dos mais explícitos libelos antirracistas que jamais publicizou. “Eu não sei qual é o meu e não estou em lugar nenhum; não estou mais servindo a mesa dos senhores brancos e nem estou mais triste na senzala em que eles estão transformando o Brasil.”

Num artigo que criticava o museu (da imagem, do som e outros) por comer no mesmo prato do nazifascismo, Gil definia o corte: o samba dele não era o samba do “bom crioulo” que integrou (integra?) como cordeiro de sacrifício o “contrato” de humilhação histórica a que o Brasil e o BraZil submeteram (submetem?) seus afrobrasileiros. Incorporar o samba sem o filtro de João significaria para Gil, provavelmente, uma capitulação. E ele resiste bravamente, até hoje, mesmo sob o ônus de algumas contradições.

Gilbertos Samba é um apanhado inequívoco de sambas, até mesmo de fibra mais tradicional, como os compostos por Zé da Zilda e Marino Pinto (“Aos Pés da Cruz”), Dorival Caymmi (“Milagre”, “Doralice”), Jaime Silva Neuza Teixeira (“O Pato”), Janet de Almeida (“Eu Sambo Mesmo”), Haroldo Barbosa e Geraldo Jacques (“Tim Tim por Tim Tim”)… O norte, no entanto, é a mistura de classes sociais germinada do encontro de João, baiano sertanejo de Juazeiro, com os moços cariocas de praia Tom, Vinicius, Carlos LyraNewton Mendonça – presentes no CD nas bossas novas “Desafinado” e “Você e Eu”, mas também na decupagem feita a partir das leituras de João para os sambas mais tradicionais.

Duas contradições, pelo menos, moram nessa gaveta. Em primeiro lugar, o libelo antirracista de Gil deságua num grau de submissão à viseira elitista e branca dos garotos de Ipanema que jazzificaram o samba (e/ou sambificaram o jazz) num vetor oposto ao de Johnny Alf ou Baden Powell.

Em segundo lugar, se é que o Gil de 2014 ainda conserva em si aquele Gil do texto 1970, de lá para cá o museu (nazifascista?) entronizou, sacralizou e santificou também a bossa nova. Passados tantos anos, talvez Cartola e Jobim sejam bem menos dessemelhantes do que já foram, ao menos no quesito do pertencimento à tradição e à conservação.

O que vai acima são meros comentários – não há que botar reparo às escolhas de Gil ou ao fato de ele conceber um trabalho francamente conservador aos 71 anos de idade. Se a origem das coisas como elas são é o racismo de que ELE foi vítima (e não você ou eu) e das marcas que ficaram NELE (e não em nós), quem sabe dele é ele e a nós nos resta ouvir.

Quanto às contradições, Gil é igual a qualquer das personalidades que  mudam a história de seus tempos e deixam marcas indeléveis, transformadoras, nas coletividades que representam. Gil é daquelas figuras que só fazem crescer com o tempo, a ponto de representar muitos valores simultâneos, alguns deles até contraditórios com os outros.

Não é por outra razão que, por exemplo, o mesmo homem protagoniza desejos censores constrangedores como os que vieram à tona no caso Procure Saber, quase ao mesmo tempo em que volta à vanguarda do planeta ao se tornar a voz artística mais loquaz (senão solitária) na defesa do Marco Civil (brasileiro) da Internet.

Gil é ao mesmo tempo LulaFHC DilmaLuiz Gonzaga, João Gilberto e Rita Lee, Zumbi dos Palmares Gilberto Freyre Jorge Ben Jor, preto, branco e amarelo. E a gente não consegue jamais decifrar quem está vencendo cada bateria dessa incrível corrida de tantos gilbertos.

Gilberto

Rádio Farofa: Banana menina tem vitamina

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A 15 minutos do início da Copa do Mundo no Brasil, o país que tanto já se autoescamoteou por trás da fórmula “não somos racistas” acordou de repente discutindo racismo. As bananas viraram símbolo controverso de um clamor vocalizado até mesmo pela presidenta da república tropical que um dia já foi rotulado de “república de bananas”. E isso tudo dá samba, muito samba – é o samba-rock, meu irmão!

1977 A Vida É Só pra CantarCanção 1. Wilson Simonal já havia caído em desgraça pela direita e pela esquerda quando registrou em disco, em 1977, o clássico “The Banana Boat Song”, celebrizado em 1956 pelo caribenho-estadunidense pop-calipso-soulman Harry Belafonte. No manifesto de Simonal, “The Banana Boat Song” veio acoplada ao afro-samba de candomblé “Nanã”, do maestro negro Moacir Santos, e à pilantragem de orgulho negro norte-americano-brasileiro “Tributo a Martin Luther King“, dele mesmo e do pilantrobossanovista Ronaldo Bôscoli. “Sim, sou negro de cor”, “o que te peço é luta sim, luta mais”, “com uma canção é que se luta, irmão”: assim termina o pot-pourri que começou em bananas.

Canção 2. A marchinha carnavalesca “Yes, Nós Temos Bananas”, de Braguinha, foi gravada originalmente em 1937, por Almirante. Em 1968, minutos antes de ser ejetado do Brasil por artimanhas do golpe civil-militar, Caetano Veloso transformou a marchinha em tropicália, desta vez aludindo ao bananeira de auditório Chacrinha e à maldição de subdesenvolvimento que sempre rondou uma propalada “república (ditadura) de bananas”: “Somos da crise/ se ela vier/ banana para quem quiser”.

1969 Os IncríveisCanção 3. Jorge Ben (hoje Ben Jor) não é muito conhecido por isto, mas sempre foi um exímio compositor de cantos de trabalho. Em 1969, o grupo Os Incríveis, egresso da jovem guarda e prestes a se enroscar no adesismo à ditadura civil-militar via “Eu Te Amo, Meu Brasil” (1970) gravou, de Ben, o canto de trabalho “Vendedor de Bananas”, um libelo antirracista por contraste positivo-negativo, daqueles que só não enxerga quem tiver cerume nos ouvidos: “O mundo é bom comigo até demais/ pois vendendo bananas eu também tenho meu cartaz/ pois ninguém diz pra mim que eu sou um pária no mundo/ ninguém diz pra mim ‘vai trabalhar, vagabundo!'”. Ninguém?

Canção 4. De volta do exílio, Gilberto Gil chamou Caetano Veloso para reerguer a tropicália sobre os escombros brasileiros, gravando o samba baiano “Cada Macaco no Seu Galho”, do sambista negro baiano conterrâneo Riachão. Racismo e antirracismo pelejavam, entre a escravidão e a pós-escravidão, entre os bairrismos e os contrabairrismos: “Esse negócio da mãe preta ser leiteira já encheu sua mamadeira, vá mamar em outro lugar/ chô chuá, cada macaco no seu galho/ chô chuá, eu não me canso de falar/ chô chuá, o meu galho é na bahia/ chô chuá, o seu é em outro lugar”. 

1959 Jackson do PandeiroCanção 5. Tropicalizada em 1972 pelo mesmo Gil, “Chiclete com Banana” vinha de 1959, desde a versão forró-jazz do paraibano Jackson do Pandeiro, de letra perfeita para os anos desenvolvimentistas de Juscelino Kubitschek e, quem sabe?, para os instantes anteriores do #VaiTerCopa 2014: “Eu só boto bebop no meu samba/ quando o tio Sam tocar um tamborim/ quando ele pegar num pandeiro e um zabumba/ quando ele aprender que o samba não é rumba/ aí eu vou misturar Miami com Copacabana/ chiclete eu mistura com banana/ e o meu samba vai ficar assim”. Assim, note-se, referia-se à mistura samba-jazz-forró que o narrador desafiava tio Sam a enfrentar, já enfrentando ele próprio.

Canção 6. O coautor baiano de “Chiclete com Banana”, Gordurinha, também registrou o confronto bélico-pacifista EUA-Brasil, no mesmo 1959. “É, mas em compensação eu quero ver o boogie woogie com pandeiro e violão/ quero ver o tio Sam de frigideira numa batucada brasileira”. Gordurinha, a propósito, muito beliscou os temas duros dos preconceitos e das discriminações inter-regionais brasileiras, em canções como “Baiano Burro Nasce Morto”, “Baianada” (1960), “Súplica Cearense”, “Quando os Baianos Se Encontram” (1961), “Baiano Não É Palhaço” (1962)…

1970 É Ferro ba Boneca!Canção 7. Dois anos antes de cantar que “o tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada” (de Assis Valente), os Novos Baianos fizeram poesia tropicalconcretista com “A Casca de Banana Que Eu Pisei” (1970): “E eu acho mais bonito/ mais bacana, cana, cana/ a casca de banana que eu pisei”.

Canção 8. O samba joia de protesto de Paulinho Soares vai no cerne do problema e esculhamba os desígnios do patrão (do tio Sam?): “No fim das contas o patrão manda e desmanda/ inda faz do rei Pelé mais um garoto-propaganda”.

Canção 9. “Chiquita Bacana”, de Braguinha e Alberto Ribeiro, é da Martinica, “se veste com uma casca de banana nanica”, não usa vestido nem calção e é “existencialista com toda razão”. Chiquita Bacana é Emilinha Borba, desde 1948.

Canção 10. Em 1968, o maestro Rogério Duprat chamou os conterrâneos paulistropicalistas Mutantes para fundir a “Chiquita Bacana”, adivinhe, à “Canção pra Inglês Ver” de Lamartine Babo: “I love you to have steven via Catumby/ independence lá do Paraguay”.

Canção 11. Se Emilinha é Chiquita, Caetano Veloso é “A Filha da Chiquita Bacana” (1977): “Puxei à mamãe/ não caio em armadilha/ e distribuo banana com os animais”. Emancipada, Chiquita Caetana entrou “pra women’s liberation front” e, no #VaiTerCopa, bem poderia se chamar Dilma Inácia Rousseff.

Canção 12. Prima afastada de Chiquita, “Juanita Banana” latiniza a bananidade, aqui em versão iê-iê-iê dos Fevers.

Canção 13. “Vem comer essa banana, que é uma refeição de fato, meu bem”, convidou o judeu carioca pré e pós-tropicalista Jorge Mautner em “Planeta dos Macacos” (1972). “Fantasiados de animais/ somos todos iguais nestes carnavais.” #SomosTodosMacacos

Canção 14. “Macacada reunida/ galera pelejando e dançando, procurando uma saída”, sugeriam os mineiros do Jota Quest em “De Volta ao Planeta”, porque “tá faltando emprego nos macacos”. Em 1998.

Canção 15. “Eu sou macaco-prego/ custei pra dar um jeito no cabelo”, cantam os mineiros do Skank em “Macaco-Prego” (1992), que tenta ser simpática, mas é inevitavelmente construída sob uma perspectiva branca.

1970 Brazilian SoulCanção 16. A brutalidade carnavalesca de Lamartine Babo na marchinha “O Teu Cabelo Não Nega”, de 1929, se funde às “Pastorinhas” (de Noel Rosa e Braguinha) e vira… black power!, no “brazilian soul” de Gerson (KingCombo e A Turma do Soul, em 1970. Não há o que possa esconder a brutalidade em pique de ódio & amor (ou erotismo): “Como a cor não pega, mulata,/ mulata, eu quero teu amor”.

1969 Luiz WanderleyCanção 17. “O cheirinho que ela tem”??? Luiz Wanderley belisca o perigo, aquele que emerge de dentro para fora, de um alagoano que driblou preconceitos cantando hinos enfezados como “Baiano Burro Nasce Morto” (1959), “Deixa o Baiano Vivê”, “Gaúcho Macho” (1960), “Trabalha Paulista” e “Papa Goiaba” (1961).

Canção 18. Sinal de que os tempos fluem, “Florentina” (1996), de Tiririca, foi mais explícita que “O Teu Cabelo Não Nega” de quase 70 anos antes – e bem mais explicitamente combatida no horror que carregava.

Canção 19. No mundo branco, sorvete de banana é o caminho pop-hollywoodiano de “Banana Split”, dos símios João Penca e Seus Miquinhos Amestrados.

Canção 20. “Cuidado com a banana, se você vacilar vai parar na minha cama” – banana tem vitamina, engorda, faz crescer e também é sexy a valer, como bem sabe o funkeiro MC Jack em “A Minha Banana” (1988). “Arranje uma banana que não seja nanica”, “banana não tem ombro, escorrega por inteiro”, e pano rápido.

Canção 21. Bananeira, não sei. Bananeira, será? Bananeira, sei não. Isso é lá com você. Em parceria com Gilberto Gil, o acreano endiabrado João Donato faz da “Bananeira” (1975) um edifício musical brasileiro.

1976 2 Visions of DawnCanção 22. Joyce, múltipla e feminina, gosta de “Banana” (1976), mas não só de banana: “Manga, caju, maracujá, sapoti, fruta de conde, jenipapo, graviola, açaí, jaca, pitanga, amora e abacaxi…” Costuma ser assim quando o microfone está nas mãos das ditas minorias.

1975 Emilio SantiagoCanção 23. O negão suingado Emílio Santiago funk-jazzeou a “Bananeira” de Donato e Gil, no mesmo ano de 1975, anos antes de se ver irremediavelmente confinado ao samba. Não foi uma sina individual – a vida sempre foi dura para os artistas brasileiros negros que, como um Johnny Alf, uma Alaíde Costa, uma Leny Andrade, uma Alcione, uma Zezé Motta e tantos outros, preferissem outros estilos ao cercado fechado do samba. País do futebol, país do carnaval, país do samba, país de bananas – quem foi que nos pregou tantas pechas de Zé Carioca? Quem fomos que deixamos?

Canção 24. “Gostando, deixa ficar”, sintetiza Marinês em “Bananeira Mangará” (1973), todo um compêndio (malicioso) de bananidades.

lp-045-varios-nac-ruy-maurity-bananeira-mangara-8594-MLB20005489788_112013-FCanção 25. Cantando com voz de homem, em 1978, o mesmo forró “Bananeira Mangará” de Marinês e Sua GenteRuy Maurity insere (mais) liberdade sexual nas bananidades.

6660237Canção 26. MC Serginho não canta as bananas nem os macacos em “Vai Lacraia” (2003), mas todos os afluentes parecem correr para um mesmo rio quando a incrível Lacraia, versão brasileira das travestis de Andy Warhol, vive 15 minutos de fama antes de morrer menina demais.

Canção 27. “Todo brasileño le gusta banana”, diz o pagode caribenho “Sweet Banana (Banana Dulce)” (2003), do Molejo, em pique de verdade universal brasileira.

2006 TimelessCanção 28. Sempre transnacional, mr. Sergio Mendes coloca a “Bananeira (Banana Tree)” (2006) de Gil e Donato na rota do Caribe, na companhia do jamaicano dancehall Mr. Vegas.

2004 Babylon by Gus - Volume I - O Ano do MacacoCanção 29. Não se tornou célebre como merecia o álbum Babylon by Gus – O Ano do Macaco (2004), de Black Alien, ex-integrante do combo Planet Hemp. “Mr. Niterói” dá bem a dimensão polirrítmica, linguística e territorial de um brasileiro (negro) que não se sente confortável em viver “preso nesse mundo que nem bicho num zoológico”. #NãoSomosMacacos

Canção 30. Matogrossense fora-do-eixo, o power trio Macaco Bong dispensa letras ou poemas para oferecer “Bananas for You All” (2008).

Canção 31. Pernambucano fora-e-dentro-do-eixo, Luiz Gonzaga dispensava letras e poemas no início de sua carreira, simplesmente porque os diretores europeizados das gravadoras multinacionais não deixavam aquele mestiço aciganado cangaceirado soltar o vozeirão. “Dança do Macaco” (1945) é desse tempo, e policial era chamado de “macaco” naqueles tempos pós-Virgulino Ferreira, o Lampião.

Canção 32. Trava-língua e a pororoca das identidades indígenas, africanas e europeias fazem a delícia do “Carimbó do Macaco” (1983) do paraense Pinduca.

1976 6 Before I Jump Like Monkey Give Me BananaCanção 33. Dor, sangue e rgulho negros elevados ao sublime pelo nigeriano Fela Kuti, em “Monkey Banana”, de 1976.

Canção 34. Em 1989, o mentor dos supergrupos Funkadelic Parliament, George Clinton veste de funk – norte-americano, carioca, paulista, brasileiro – os humores caribenhos da velha “The Banana Boat Song”.

enlargementCanção 35. Para não dizer que não falamos das bananas, a versão afrocaribenha fundadora de “Banana Boat Song (Day-O)”, de 1956, com Harry Belafonte.

Canção 36. Para não dizer que não falamos dos macacos, a versão de autor de Riachão para “Cada Macaco no Seu Galho”, em 1973.

1972 Expresso 2222Canção 37. “É o samba-rock, meu irmão”, reinventou Gilberto Gil, pós-tropicalizando a bananidade.

Canção 38. Acompanhada de “Cosa Nostra” e “Bicho do Mato”,  eis a versão autoral de Jorge Ben para o canto de trabalho do menino (negro) que vendia bananas, mas era honrado, mãe.

Canção 39. Sob frases de Leila Diniz. “Brigam Espanha e Holanda pelos direitos do mar. O mar é das gaivotas que nele sabem voar. Brigam Espanha e Holanda porque não sabem que o mar é de quem o sabe amar.” A canção de Milton Nascimento é seriíssima, e curiosamente batizada “Um Cafuné na Cabeça, Malandro, Eu Quero Até de Macaco” (1980).

É proibido (se) exaltar?

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Da paixão correspondida entre a música brasileira e o regime ditatorial do gaúcho Getúlio Vargas, nasceu o Brasil-exaltação:  Heitor Villa-Lobos, “Bachianas Brasileiras”, Ary Barroso, “Aquarela do Brasil”, “Isto Aqui o Que É”, Rádio Nacional, Francisco Alves Dalva de Oliveira, a exaltação à Bahia-berço-do-Brasil…

O ufanismo à la Barroso era bajulatório, barroco, rococó, escalafobético, um tanto rebimbocado da parafuseta. Mas naquele tempo, parece, não era feio, errado, pusilânime ou calhorda exaltar, ufanar, ostentar, afirmar amor ao Brasil.

E, sim, a “era de ouro” dos “cantores do rádio” era feita de ditadura e abdicação e sujeição a Walt Disney e aos Estados Unidos da América do Norte. Carmen Miranda, a carioca que parecia baiana, mas era portuguesa, não gostou da ~ditadura~ e foi viver ~liberdade~ internacional braZileira, interpretando subalternas mexicanas em filmes de Hollywood. Dos píncaros da glória, só voltou morta ao Rio de Janeiro.

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O ditador virou presidente democraticamente eleito. A elite cafeeira não gostou da ditadura da democracia. UDN. Carlos Lacerda. Um ET cigano plantou Brasília no coração do Brasil: Juscelino Kubitschek. Eleições, democracia, bossa nova, república rycah de Ipanema y Copacabana.

João Gilberto, único baiano sertanejo feminino entre os garotos machinhos de Ipanema, destoou da fórmula praia-exaltação e, no corridinho das décadas, exaltou à vera a Bahia (e o Rio) e o Brasil: “Samba da Minha Terra” e “Saudade da Bahia” (ambas de Dorival Caymmi), “Na Baixa do Sapateiro” e “Aquarela do Brasil” (de Ary Barroso), “Eu Vim da Bahia” (do pupilo manso-e-rebelde Gilberto Gil), “Bahia com H” (do paulista-de-pseudônimo-anglo Denis Brean), “Canta Brasil” (dos – será? – getulistas David Nasser Alcyr Pires Vermelho), “Adeus América” (de Haroldo Barbosa Geraldo Jaques)…

1964. MPB. 1968. Tropicália. AI-5, 13 de dezembro de 1968 (dia do aniversário de Luiz Gonzaga, eterno legalista admirador de Lampião). Os Estados Unidos da América do Norte invadem a América Latina inteirinha, e o BraSil, e o ufanismo braZilEUA vira a água que sai de todas as torneiras.

Gilberto GilCaetano VelosoGal CostaRogério DupratTorquato NetoMutantesTom Zé, CapinanJúlio Medaglia e a ex-garota-de-Copacabana Nara Leão, entre vários outros, inventam a trans-exaltação. Exaltam para esculhambar, debocham para exaltar: “Tropicália”,  “Soy Loco por Ti, América”, “Marginália II”, “Panis et Circensis”, “Miserere Nobis”, “Parque Industrial”,  “Geleia Geral”,  “Três Caravelas”, “Lindoneia”, “Bat Macumba”, “Hino ao Senhor do Bonfim da Bahia”, “Yes, Nós Temos Bananas” (de Braguinha), “A Voz do Morto”, “São São Paulo”, “Divino, Maravilhoso”, “2001”, “Aquele Abraço”, “Meu Nome É Gal”, “Jimmy, Renda-Se”, “Chão de Estrelas” (de Orestes Barbosa Silvio Caldas)…

Copa do Mundo de 1970. Wilson Simonal, “País Tropical”, Jorge BenPeléJair RodriguesToni Tornado, Tim Maia, black power, Vera Fischer, Arlete Salles, Rede Globo, repressão-power, “pra frente, BraZil!”, “ame-o ou deixe-o”, “eu te amo, meu Brasil, eu te amo”, Os IncríveisDom & Ravel, Ultragaz, O Pasquim, esquerdireitas (des)unidas, avante. Elza Soares (& Garrincha). Dilma Rousseff torce pela seleção brasileira entre uma sessão de tortura e outra.

É proibido torcer pelo BraZil: você é um traidor da pátria assaltada por ditadores (civil-)militares.

É proibido torcer contra o BraSil: você é um comunista comedor de criancinhas do iê-iê-iê.

É proibido fumar, é proibido pisar na grama, e os adaptadores tropicalistas do “é proibido proibir” foram expulsos do BraZSil.

O Festival Internacional da Canção, do aparato Globo-Time-Life, e a Copa do Mundo ensaiam se tornar mensagens brasileiras atiradas em garrafas latino-americanas nos oceanos do mundo. Há tortura (experimente perguntar para a hoje presidenta do BraSil), e o mundo não pode saber, senão cortem-lhe as cabeças! Vão-se as cabeleiras black power de Simonal, Tornado, Erlon Chaves etc. e tal.

A exaltação chega ao ápice com a vitória do BraZil na Copa de 1970, para logo em seguida iniciar seu mais longo e persistente inverno de hibernação. O sinal está fechado para nós, que somos jovens – BelchiorElis Regina, mais uma “Aquarela do Brasil” (misturada com o tema racista “Nega do Cabelo Duro”, de Rubens Soares  com o também-jornalista David Nasser), as “Águas de Março” fechando o verão (até mesmo na Cantareira).

1975, 1976. Fechadas as comportas do BraSZil-exaltação, há quem tente a brecha latino-americana – e a Latino América é toda ditaduras. “América do Sul”, com Ney Matogrosso. “Los Hermanos” e “Gracias a la Vida”, com Elis. “Volver a los 17″, com Milton Nascimento (e Mercedes Sosa). “Soy Latino Americano”, com Zé Rodrix. Não vai durar muito a latino-ostentação.

Vem a reação pós-tropicalista ao “ame-o ou deixe-o”, e a exaltação já não é a um país ou a um continente: “O seu amor, ame-o e deixe-o livre para amar”, “o seu amor, ame-o e deixe-o ir aonde quiser”, “o seu amor, ame-o e deixe-o brincar, correr, cansar, dormir em paz”, cantaram os Doces Bárbaros Caetano, Gal, Gil e Maria Bethânia.

Anos 1980, 1990. O yuppismo norte-americanizado invade as redações moderninhas do eixo Tradição-Família-Propriedade, do eixo Rio-São Paulo. Gravadoras multinacionais, Organizações Globo e Folha de São Paulo manietam a indesejada redemocratização, e deus-nos-livre de qualquer ufanismo nem exaltação: “A gente somos inútil!”. Leonel BrizolaLuiz Inácio Lula da SilvaFernando Collor. Prepara-se o ~consenso~ neoliberal. (“Falsa Baiana”, 1944, de Geraldo Pereira.Fernando Henrique Cardoso.

“Sinais de vida num país vizinhEUA, eu já não ando mais sozinhEURO”, “bichos escrotos, saiam dos esgotos”, “se cheira pra todo lado: que país é este?”, “quem são os ditadores do partido colorado?, o que é democracia ao sul do Equador?, quem são os militares ao sul da cordilheira?, quem são os assassinos dos índios brasileiros?, quem são os estrangeiros que financiam o terror em Parador?”, “mostra tua cara!”. Renato RussoCazuza, Marina LimaTitãsIra!, Paulo RicardoRoger MoreiraLobão: proibidão-exaltação.

É proibido (se) exaltar. É proibido ufanar. Canção de protesto é proibida – além de ser cafona, chata, panfletária. O neoliberalismo jornalístico musical braZilEUA exalta Blur Oasis enquanto massacra o amor-próprio e a auto-exaltação-ostentação, devidamente garroteado pelo ideário político dos chefes mais ~altos~ das redações (e, evidentemente, dos patrões e dos patrõe$ dos patrões).

É proibido protestar contra o BraZil porque é proibido exaltar o BraSil porque é proibido ostentar o orgulho braSileiro porque as canções de protesto de Geraldo Vandré Mano Brown Marcelo Yuka são chatas cafonas fanáticas panfletárias ~esquerdinhas~.

Esmorecida(s), a(s) ditadura(s) faz(em) últimos refúgios nas redações, no Jornal Nacional, na OMB, na OAB, na TFP, no CCC, na monarquia, na sujeição a Washington. As ditaduras encolhem, mas vigoram.

A exaltação migra para o corpo: pagode, lambada, fricote, axé music, forró, brega. Segura o Tchan, amarra o tchan, libera o tchan! Quem não gosta do corpo bom sujeito não é – e, nos nichos de ditadura, é proibido gostar do corpo.

Então Luiz Inácio Lula da Silva, então Gilberto Gil & Juca Ferreira no Mini(mi)stério das Culturas, então Dilma Rousseff.

Então o rap. O funk. O tecnobrega. O forró eletrônico. O lambadão. O sertanejo universitário. O Teatro Mágico. A tchê music. O funk do pré-sal (canção 104 abaixo). O funk-ostentação. O funk brasileiro. (Os MCs assassinados pelo aparato civil-militar paulista.)

Enquanto a MPB é sistematicamente (auto)calada pelas ditaduras midiáticas, o BraSil profundo SE exalta, à margem das desmaiadas gravadoras e das moribundas redações. A Globo se debate para submeter Gaby AmarantosMC Guime – esse jogo não pode ser zero a zero!

O sinal permanece fechado para nós que somos velhos, mas está novamente aberto para nós que somos jovens.

Mas está aberto, ou está fechado, o velho sinal de Paulinho da Viola?

Por que, em plena Copa do Mundo do BraSil, a música braSileira guarda uma mordaça atada à face por entre black blocs e anonymous e rappers brancos norte-americanos vestidos de pula-brejo numa cerimônia junina que sabota a neurociência braSileira?

Por que as arenas de futebol estão invadidas e dominadas e domadas por caras-pálidas fantasiados de verde e amarelo (cores que, na maior parte do tempo, os caras-pálidas odeiam)?

Por que não toca música brasileira na Copa da mais pujante DEMOCRACIA que já tivemos?

Quando foi que, neste longo caminho, nos auto-interditamos de exaltar, de nos exaltar e de (por que não?) exaltar os nossos contra-irmãos?

Junho de 2014, BraSil braZileiro. (Assis Valente, mulato baiano homossexual suicida.) A mídia BraZil braZileuro braZilEUA, após quatro anos ininterruptos de profecia do caos, assassina Mãe Menininha do Gantois e se consuma na recém-falecida Mãe Dinah.

#NãoVaiTerCopa. PSOL. Marina Silva. Bradesco, Natura, Itaú-Kaiowá. Caos aéreo. Caos energético. Caos terrestre. (Caos hídrico ou metroviário, jamais!) Caos subterrâneo. CAAAAAAAOOOOOOOOOOZ BRAZYLEYRO!!!!!! Glauber RochaSérgio Ricardo, Jorge MautnerProfeta Gentileza (gera gentileza).

E o mundo chega ao BraSZil. A mídia braZileura anunciara e garantira que não ia chegar, mas chega, chegou.

Se em 1970 braSileiros se exilavam no chamado ~Primeiro Mundo~ e levavam para fora notícias da tortura braZilEUA, hoje é o mundo que vem aqui nos visitar e contar para nós-braSileiros e eles-braZileiros que o BraSil é UM POUCO diferente daquilo que os anfitriões da festa & $eu$ patrõe$ andaram pintando. Um pouco. Diferente. Ronaldo, fenômeno de vergonha alheia (ou não-alheia, porque NOSSA).

Nas ruas, florestas e praias amazonenses, gaúchas, cariocas e baianas do Bra$il, holandeses, argentinos, ingleses e croatas fazem o carnavalito para bailar. Nós-braSileiros, por enquanto, assistimos de braços meio cruzados oa inesperado, surpreendente, inimaginável espetáculo que nós mesmos proporcionamos. Sem ostentação. Sem exaltação. Sem exaltar. Sem NOS exaltar. Agora antimacunaímicos. Porque vivemos numa democracia plena que (ainda) nos proíbe de (nos) exaltar.

 

P.S. 100% leigo sobre futebol: merece ganhar a Copa do Mundo um país que não se ufana, não se exalta, não se emociona, não se orgulha de si e não mergulha de cabeça nas suas paixões? Particularmente, acho que não merece…

P.S. 50% leigo sobre música: segue abaixo uma radiola sonora (a música) e uma listagem escrita (o jornalismo) de 108 canções ufanistas (a política) de BraSil-exaltação (o esporte) de samba-ostentação (a cultura). Podiam ser 1.008. Ou 10.008. Ou quantas os srs. e sras. compositoras decidam nos presentear dora dora dora em diante.

(P.S. os dois vídeos acima foram incluídos posteriormente, em 8 de julho de 2014, dia da derrota da seleção brasileira para a Alemanha.)

 

1. João GilbertoCaetano Veloso Gilberto Gil, “Aquarela do Brasil” (1980) – samba-exaltação mais eloquente da era Getúlio Vargas, foi composto em 1939 pelo mineiro Ary Barroso e gravado originalmente pelo carioca Francisco Alves – 41 anos mais tarde, ainda na vigência da ditadura civil-militar de 1964, a tropicália e o homem-vertente-baiana da bossa nova aprovavam.

2. Francisco Alves Dalva de OIiveira, “Brasil!” (1939) – o índio civilizado?, e abençoado por Deus??

3. Francisco Alves, “Aquarela do Brasil –  1ª Parte” (1939) – o mulato risoneiro???

4. Francisco Alves, “Aquarela do Brasil –  2ª Parte” (1939) – o Zé Carioca?, o Pato Donald??

5. Jorge Goulart, “Isto Aqui o Que É” (1949) – este Brasil que canta e é feliz, feliz, feliz, um pouco de uma raça que não tem medo de fumaça.

6. Marlene, “Lata d’Água” (1952) – o morro-exaltação: sobe e não se cansa, lá vai Maria (e lá vai Marlene, que a Copa do Brasil de 2014 nos levou e que FAROFAFÁ homenageia com amor e emoção).

1956 Lá Vem o Brasil7. Inezita Barroso, “Lá Vem o Brasil” (1956) – caipira e interiorano, o BraSil da paulista Inezita é dos tamoios, de pai joão, da mãe preta, das violas, de Lampião, do candomblé, do samba, do braseiro das suas fogueiras, das noites bonitas de junho…

8. Dorival Caymmi, “Samba da Minha Terra” (1957) – quem não gosta do Brasil bom sujeito não é: é ruim da cabeça, ou é doente do pé.

9. Angela Maria, “Canta, Brasil” (1957) – a exaltação getulista de Alcyr Pires Vermelho e David Nasser, toda exacerbada, seus ~ritmos bárbaros~, suas reservas de prantos, sua voz enternecida, sua ~alegria~ macunaímica.

1957 Eu Vou pra Maracangalha10. Dorival Caymmi, “Saudade da Bahia” (1957) – porque Bahia é um pedacinho de Brasil, iaiá – o pedaço mais orgulhoso de si?

11. Blecaute, “A Voz do Morro” (1959) – Juscelino Kubitschek, Brasília, Zé Keti: eu sou o samBrasil, a voz do morro sou eu mesmo, sim, senhor, quero mostrar ao mundo que tenho valor.

12. Luiz Gonzaga, “Marcha da Petrobras” (1959) – nove anos antes de se tornar sustentador disciplinado da ditadura civil-militar, Gonzagão era um nacional-getulista petrolífero: “Brasil, eu Brasil, tu vais prosperar, tu vai, vais crescer ainda mais com a Petrobrás”.

13. Gilberto Gil, “Povo Petroleiro” (1962) – desconhecido, anônimo, pré-tropicalista, pré-MPB: Gilberto Gil petroleiro, está jorrando petróleo das terras da nossa Bahia!

14. Inezita Barroso, “Hino à Bandeira Brasileira” (1964) – começa a ditadura civil-brasileira do dia da mentira, sob o lindo pendão da ~esperança~,  símbolo ~augusto da paz~.

15. Doris Monteiro, “Deus Brasileiro” (1964) – um ufanismo bossa-novista, na aurora de nova ditadura, da clave do jovem Marcos Valle: quem nasceu na minha terra nem sabe o que é guerra.

16. Elizeth Cardoso, “400 Anos de Samba” (1965) – escreve-se no asfalto a história do Rio de Janeiro – e do Brasil.

17. Gal Costa, “Eu Vim da Bahia” (1965) – do Gilberto Gil pós-petroleiro, pré-tropicalista, sempre baianista: eu vim da Bahia contar tanta coisa bonita que tem.

1965 Rancho da Praça Onze18. Dalva de Oliveira, “A Bahia Te Espera” (1965) – Bahia-exaltação, da magia, dos feitiços, da fé, dos saveiros, do candomblé, do vatapá, de Iemanjá – ela te espera.

1966 1 Artista de Circo19. Tonico & Tinoco, “Percorrendo Meu Brasil” (1966) – o Brasil tem Rio Grande, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais…? Tem, sim, sinhô.

20. Paulo Diniz, “Brasil, Brasa, Braseiro” (1967) – samba-soul-exaltação: salve o povo brasileiro!, gente que nem formigueiro!

21. Caetano Veloso, “Soy Loco por Ti, América” (1968) – a manhã tropicalista se inicia, tendo como colores la espuma blanca de Latino América y el cielo como bandera.

22. Sidney Miller, “História do Brasil?” (1968) – o velho Lamartine Babo e a antitropicália, do guarani ao guaraná: quem foi que inventou o BraZil?

1968 Tropicália ou Panis et Circensis23. Caetano VelosoGilberto Gil, Mutantes Gal Costa, “Hino ao Senhor do Bonfim da Bahia” (1968) – dessa sagrada colina, mansão da misericórdia, dai-nos a graça divina da justiça e da concórdia – oi?

24. Noriel Vilela, “Saudosa Bahia” (1969) – são tempos de exílio, está fazendo três semanas que eu saí de lá.

25. Gilberto Gil, “Aquele Abraço” (1969) – ora, vamo-nos embora, mas o Rio de Janeiro continua lindo.

1969 Jorge Ben26. Jorge Ben, “País Tropical” (1969) – Brasil, eu fico!

27. Wilson Simonal, “Aqui É o País do Futebol” (1970) – Brasil está vazio na tarde de domingo, né?

28. Tom Jobim, “Brazil” (1970) – do exílio cultural, nosso branquelo inzoneiro.

29. Milton Nascimento, “Para Lennon McCartney” (1970) – por que vocês não sabem do ~lixo~ brasileiro?

1970 Quero Voltar pra Bahia30. Paulo Diniz, “Quero Voltar pra Bahia” (1970) – I don’t want to stay here, I wanna to go back to Brazil.

31. Mutantes, “Chão de Estrelas” (1970) – morro-exaltação de Orestes Barbosa e Silvio Caldas, paulistano-tropicalizada.

32. Jair Rodrigues, “Martim Cererê” (1971) – o coração de Jair não aguentou esperar pela Copa de 2014, vir cá Brasil ler sua mão, que grande destino reservaram pra você?… (com as mais profundas homenagens de FAROFAFÁ a São Jair).

33. Baden Powell, “Brasiliana” (1971) – e quem disse que são necessárias palavras para ufanar, São Baden?

34. Vinicius de MoraesMarília Medalha Toquinho, “A Bênção, Bahia” (1971) – os afro-samba-exaltação!!!, nós viemos dormir no colinho de Iemanjá.

35. Tim Maia, “Meu País” (1971) – de volta dos Estados Unidos da América, onde amargou cana, Tim dá um passa-moleque encabulado na viralatagem: sim, bem, sei que aprendi muito no seu país, porém no meu país senti tudo o que quis.

36. Jorge Ben, “Porque É Proibido Pisar na Grama” (1971) – Ben-exaltação, acordado com uma vontade de abraçar o mundo no colo do Brasil.

1971 Terra Boa37. Dom & Ravel, “Terra Boa” (1971) – terra boa, terra boa, tá nascendo tudo – e a esquerda brasileira não perdoará dois ~caipiras~ do fundão do apoio popular à ditadura de direita.

38. Elis Regina, “Exaltação a Tiradentes” (1971) – em nova onda de samba-exaltação, a MPB revive os enredos ufanistas das décadas anteriores, até para revalidar nas barbas de Tiradentes as barbas de Jesus Cristo.

39. Dom & Ravel, “Você Também É Responsável” (1971) – ou você NÃO é, NUNCA, responsável por NADA que seu país cria e destrói?

40. Jorge Ben, “Salve América” (1972) – salve América – América Latina, SOUTH América. Permaneceu inédita em 1972…

1972 2 Sangue, Suor e Raça41. Elza Soares Roberto Ribeiro, “Swing Negrão/ Brasil Pandeiro/ O Samba Agora Vai/ É com Esse Que Eu Vou” (1972) – suingue do negrão brasileiro para o tio Sam tocar pandeiro e o mundo sambar: o litoral.

1972 2 Índia42. Cascatinha & Inhana, “Relíquias Sertanejas” (1972) – ó meu sertão do meu país, aqui na roça vivo alegre e sou feliz: o interior.

43. Roberto Carlos, “A Montanha” (1972) – a exaltação a um deus, já que anda difícil exaltar um país…

44. Dercy Gonçalves, “A Perereca da Vizinha” (1964) – não tem nada a ver com a cronologia, nem com o tema, mas, sei lá, é Copa, deu vontade de colocar aqui. Afinal, a vizinha é boa-praça, a vizinha é camarada.

45. Wilson Simonal, “Saravá” (1972) – Para não falar que não falamos de quando quisermos falar com Deus: Salve o povo de aruanda, a terra de nagô, muita paz e amor na Terra, o reino do senhor!

46. Ronnie Von, “Cavaleiro de Aruanda” (1972) – quem é esse cacique?

47. Antonio Marcos, “O Homem de Nazareth” (1973) – ou vamos seguir com fé tudo que nos ensinou o… Brasil?

48. Raul Seixas, “Al Capone” (1973) – quem é que te orienta, senhores não-samba-exaltadores?

49. Synval Silva, “Brasil, Explosão de Progresso” (1973) – Brasil, gigante do universo, explosão de progresso, passado de glória, lutas, amor, vitória, união das raças, miscigenação…

50. Pessoal do Ceará, “Terral” (1973) – Ednardo e a nata do lixo, o luxo da aldeia, o Ceará.

51. Cartola, “Alvorada” (1974) – Mangueira-exaltação, ninguém chora, não há tristeza, não existe dissabor.

1974 A Senha do Novo Portugal52. Nara Leão, “Grandola, Vila Morena” (1974) – Nara, a bossa, a fossa, a Coroa Portuguesa, o Brasil, a nossa imensa dor.

1974 Brasil com _S_53. Rogério Duprat, “Isto Aqui o Que É” (1974) – o maestro paulistropicalista, exilado dos companheiros de invenção, pós-exaltador num disco denominado Brasil com S.

54. Mano Décio da Viola, “Heróis da Liberdade” (1974) – um samba-exaltação composto com Silas de Oliveira para as avenidas?, ou um dos maiores libelos antiescravagistas da história da humanidade?

55. Ademilde Fonseca, “Brasileirinho” (1975) – brasileirinho Waldir Azevedo, um desacato quando chega no salão global.

1975 Volume 256. Baiano & Os Novos Caetanos, “Ameriqueiro” (1975) – Chico Anysio Arnaud Rodrigues, samba-rock, samba-soul & forró-samba: não sou americano com meu pouco dinheiro eu sou brasiliano e se não me engano sou ameriqueiro.

57. Martinho da Vila, “Aquarela Brasileira” (1975) – o Brasil-exaltação tem Amazonas, Pará, Marajó, Ceará, Tupã, Bahia, Pernambuco…? – tem, sim, sinhô Silas de Oliveira!

58. Ney Matogrosso, “América do Sul” (1975) – desperta, América Brasileira!

59. Zé Rodrix, “Soy Latino Americano” (1976) – muita gente me censura e acha que eu estou errado.

1976 1 Tim Maia Racional e Coro Racional60. Tim Maia Racional, “Brasil Racional” (1976) – nada de fuzil, nada de canhão – uma marchinha-exaltação para o Universo em Desencanto?! #SóNoBraZil! 

1976 Wando61. Wando, “O Rei” (1976) – pré-~brega~, Wando cerze o épico-exaltação do rei que se despe e vira passageiro de trem.

62. Joyce, “Nacional Kid” (1976) – ele é um rapaz brasileiro, mas sua identidade secreta braZileira ficou inédita em 1976…

63. Maria BethâniaGilberto GilCaetano Veloso As Gatas, “As Ayabás” (1976) – as orixás e a mulher-exaltação: nem um outro som no ar, eu agora vou bater para todas as moças.

64. Maria Bethânia, “A Bahia Te Espera” (1976) – e para mãe Dalva também.

65. Benito di Paula, “Tudo Está no Seu Lugar” (1976) – no Brasil braZileiro do ~milagre~, tudo está no seu lugar, graças ao(s) Rei(s).

66. Novos Baianos, “Ninguém Segura Este País” (1978) – por um Gilberto Gil pré-pós-ufanista: é moda dizer que baiano está por cima, e entra ano e sai ano e mais um carnaval de lascar o cano – mas e o país?

67. Bebeto, “Céu Aberto Colorido” (1978) – que felicidade, que grande alegria por eu ter nascido no país de maravilha.

68. Edu Lobo, “O Trenzinho do Caipira” (1978) – nem bossa, nem MPB, muito menos tropicália, Edu revalida a exaltação getulista de Heitor Villa-Lobos pelos trilhos moídos dos interiores.

69. Elizeth Cardoso, “Bachianas Brasileiras Nº 5 – 1ª Parte da Ária (Cantilena)” (1979) – Villa-Lobos, David Nasser e este céu vazio de esperança…

1979 Era uma Vez um Homem e o Seu Tempo70. Belchior, “Brasileiramente Linda” (1979) – linda mente brasileira, oh yes.

71. Elis Regina, “O Bêbado e a Equilibrista” (1979) – anistia-exaltação, enquanto a tarde ditatorial começa a cair e nos leva Elis.

72. Alcione, “Dia de Graça” (1979) – avenida-exaltação, pela pena poética do militar Candeia.

1980 Brasil Mestiço73. Clara Nunes, “Brasil Mestiço Santuário da Fé” (1980) – exaltação amarga de Paulo César Pinheiro, desde o tempo da senzala enquanto mais chicote estala e o povo se encurrala.

74. Martinho da Vila, “O Grande Presidente” (1980) – presidente-exaltação: Getúlio Vargas, estadista, idealista, realizador, grande presidente de valor. Pode, Arnaldo Antunes?

1980 Luiz Gonzaga75. Luiz Gonzaga, “Sou do Banco” (1980) – eu sou do banco, do banco, do banco, mas de qual banco? Do Banco do Brasil. (Do mesmo compacto duplo que conteve a versão gonzaguiana de “Para Não Dizer Que Não Falei das Flores (Caminhando)”, de Geraldo Vandré.)

1982 Fruto do Suor76. Raíces de América, “Soy Loco por Ti, América” (1982) – desperta, América Mais-Que-Brasileira!

77. Rita Lee João Gilberto, “Brazil com S” (1982) – porque terra linda assim não há, com tico-ticos no fubá, quem te conhece não esquece.

78. Dori Caymmi, “Samba do Carioca” (1983) – vamos, brasileiro, sai do teu sono devagar…

79. Elza Soares, “Heróis da Liberdade” (1985) – o mais lindo libelo antiescravagista, na mais linda voz pró-liberdade: exaltação, por todos os poros.

1984 Gagabirô80. João Bosco, “Jeitinho Brasileiro” (1984) – porque o negócio é levar vantagem em tudo, mora?

81. Leci Brandão, “Isso É Fundo de Quintal” (1985) – quintal-exaltação: é pagode pra valer!

82. João Bosco, “Da África à Sapucaí” (1986) – lirismo África-Brasil: exaltação.

1986 João Gilberto Live at the 19th Montreux Jazz Festival83. João Gilberto, “Adeus América” (1986) – para Carmen Miranda, que só pôde voltar morta.

84. Olodum, “Revolta Olodum” (1989) – retirante, ruralista, lavrador: revolta-exaltação?

1989 Roberto Carlos85. Roberto Carlos, “Amazônia” (1989) – a ascensão de Fernando Collor, o índio capixaba e a Amazônia, insônia (oi?) do mundo.

86. Daniela Mercury, “Menino do Pelô” (1991) – todo menino do Pelô sabe exaltar o tambor.

87. Grupo Raça, “Da África à Sapucaí” (1991) – o lirismo de João Bosco de Minas Gerais, em pagode-exaltação.

88. Gal Costa, “Tropicália” (1992) – já sob o crepúsculo de Fernando Collor, a manhã tropical se irradia.

1992 Presidente Caô Caô89. Bezerra da Silva, “Eu Sou Favela” (1992) – a favela-exaltação se levanta: nunca foi reduto de marginal!!! – e essa verdade não sai no jornal.

90. Cidinho & Doca, “Rap da Felicidade” (1993) – o funk-exaltação!

1995 Da Lata91. Fernanda Abreu, “Brasil É o País do Suingue” (1994) – e deixa solta essa bundinha.

92. Grupo Fundo de Quintal, “Brasil Nagô” (1994) – se mandarem me chamar eu vou, sou brasileiro, sou nação nagô.

93. Chico César, “Mama África” (1995) – mãe-exaltação, solteira, mamadeireira, empacotadeira nas Casas Bahia.

94. Daúde, “Vida Sertaneja” (1995) – sertão-exaltação: modernidade.

1998 Moro no Brasil95. Farofa Carioca, “Moro no Brasil” (1998) – Seu Jorge e um novo modelo de amor-próprio: moro no Brasil, não sei se moro muito bem ou muito mal, só sei que agora faço parte do país: a ~beleza~ que nos perdoe, mas a inteligência é fundamental.

96. SNJ, “Se Tu Lutas Tu Conquistas” (2000) – rap-exaltação do Somos Nós a Justiça: as periferias se erguem.

2002 Nada Como um Dia Após o Outro Dia97. Racionais MC’s, “Negro Drama” (2002) – sente o drama, sente um novo caminho que se abre para o Brasil na esquina entre 2002 e 2003.

2005 Sujeito Homem 298. Rappin’ Hood e Arlindo Cruz, “Muito Longe Daqui” (2005) – rap-pagode-favela-exaltação: numa cidade muito longe, muito longe daqui, que tem favelas que parecem as favelas daqui…

99. Matéria Rima, “De Rolê pelo País” (2005) – rap-forró-exaltação: minha vida é andar por este país…

100. Banda Fruto Sensual, “Coisas de Santa Izabel” (2010) – tecnobrega-exaltação às coisas das periferias paraenses.

101. Gang do Eletro, “Panamericano” (2010) – meu amigo americano chegou de Nova York, veio conhecer aparelhagem do norte.

102. Aviões do Forró, “Pegadinha do Inglês” (2010) – eu vou cantar pra tu, girl beautiful, I love you, I love you: boy, te peguei na pegadinha do inglês, sou brasileira, não sou americana. 3-)

2011 Michel na Balada103. Michel Teló, “Humilde Residência” (2011) – é humilde, mas é de responsa: bem-vindos à nossa residência pra gente fazer Copa do Mundo, sras. & srs. gringos.

104. MC Sabrina, MC Suzy, Andrezinho Shock, Martinho, Hermes Filho e Mag, “Pré-Sal” (2010) – tu acha certo usufluir do que não é seu?, vocês tiveram suas riquezas, ninguém se meteu.

105. Leandro Lehart, “Do Iorubá ao Reino de Oyó” (2011) – samba-exaltação paulistano de avenida: os orixás, o calor, a nobreza, a tradição contrariada do ~amor~.

2012 Mixturada Brasileira - Vol. 01106. Carlinhos Brown Ítala Marques, “Seu Cabelo É Bom” (2012) – cabelo-exaltação: respeitem nossos cabelos, brancos!

107. MC Guime Emicida, “País do Futebol” (2013) – até gringo exaltou!

108. Caetano VelosoGal CostaGilberto Gil e Maria Bethânia, “O Seu Amor” (1976) – os Doces Bárbaros, e basta de “ame-o ou deixe-o”: o seu amor. ame-o. e deixe-o. livre. para ir. onde. quiser.

1976 Doces Bárbaros

A música pop em trânsito: punk rock, hip hop e eletrônica em São Paulo de 1970 a 2014

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“O clima é muito festivo (…). Tem gente chamando até de Arena Tietê. Eu acho que está bem legal e o público está convidado a frequentar hoje e sempre um espaço que agora é público”, disse o prefeito Fernando Haddad (durante o show do @Public Enemy no sábado (19) em São Paulo.

Arte Ana Clara Ferrari

Arte Ana Clara Ferrari

Sim, o clima estava ótimo MESMO. Enquanto Rashid, Thaíde, Dexter, Nelson Triunfo estavam no palco jamming ‘till the break of night com Flavor Flav, Chuck D e DJ Lord, lembrei de um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Janaina Rocha e Mirella Domenich, que editei e virou um livro pela Fundação Perseu Abramo. Foi uma aventura fazê-lo, porque eu não sabia de nada àquela época sobre hip hop & rap, quanto mais ajudar alguém a escrever sobre hip hop & rap. Portanto, tive de repensar toda a minha trajetória de jornalista cultural até então e estudar vários temas sobre os quais tinha mais opinião do que conhecimento.

Mais ou menos entre o final de 2003 ou comecíssimo de 2004 escrevi um ensaio sobre os caminhos da música em São Paulo, hip hop & rap inclusive,entre os anos 1970 e 2000. Era fruto de uma reflexão ainda em maturação, que saiu publicado em um livro bacana, São Paulo: Metrópole em trânsito, perfis urbanos e culturais (Editora Senac, 2004, organizado por Vladimir Sachetta e Lúcia Helena Gama). Retomei-o em 2011, 2012 e, bom, agora aqui está uma revisão mais ou menos decente.

O encontro do prefeito Fernando Haddad e o rapper Emicida

O prefeito Haddad e o rapper Emicida – Fotos: Divulgação

O sistema circulatório do pop – música em trânsito

Uma das imagens-clichê de São Paulo é aquela que mostra uma avenida qualquer da cidade tomada por carros na hora do rush. Quase que se pode ouvir o som dessa cena: buzinas a esmo, a tensão da espera no ar, resmungos particulares, uma explosão de impaciência aqui e ali. Fruto de uma combinação funesta de milhares de carros em circulação, transporte coletivo precário e um feroz individualismo, os engarrafamentos tornaram-se uma das marcas distintivas da cidade.

Num lugar às avessas como São Paulo, essa imagem-emblema plasma o negativo daquilo que, aí sim, é sua verdadeira alma: o trânsito de pessoas, de coisas e de ideias. Os sinais deixados pela circulação contínua e permanente teceram a malha cultural paulistana. As origens diversas de seus habitantes a fizeram receptáculo dinâmico de múltiplas influências e receptiva a invenções várias. Cidade cujas referências geográficas estão praticamente ocultas pela intervenção humana, é difícil nela distinguir com precisão o centro da periferia e a periferia do centro. O crescimento desordenado dos últimos 40 anos multiplicou centros e periferias, de forma que toda São Paulo é um emaranhado de fluxos contínuos de entrada e saída.

[Essa é a parte do texto que é tãão 2004, com todas as marcas daquele jornalismo musical duro e meio furioso pelo nosso “atraso” dos anos 80: uma certa insistência no antinacionalismo, aquela ignorância arrogante… As revisões só corrigem as bobagens de texto.]

A pecha de túmulo do samba que vem ali dos 60 se radicalizou, na década de 80 e em determinados grupos, numa operação de sepultamento de toda a MPB. E fazia todo o sentido.

A MPBzona dos sobreviventes dos festivais dos anos 60, aquela que nos anos 70 se firmou como a música brasileira que agradava um espectro que ia da esquerda nacionalista à Rede Globo, às tantas não falava mais com a juventude inquieta que tinha crescido sob a ditadura. Baianos tropicalistas, cariocas do samba intelectualizado, mineiros beatlemaníacos – isso era música dos pais, dos professores, das autoridades, em suma, do establishment.

Se há alguma coisa que costura as principais manifestações musicais de São Paulo nos últimos 20 anos é uma forte crítica, às vezes beirando a rejeição e, nos casos mais extremos, a repulsa, ao modelo carioca-baiano de brasilidade e à música tributária da bossa nova e do tropicalismo. Sob este signo é que se desenvolveram o punk e o pós-punk, o rap e a cena eletrônica, que podem ser recortados como as movimentações musicais mais propriamente paulistanas. O rock underground, o rap e a cena de música eletrônica deram as costas para o Rio de Janeiro e para a Bahia e descobriram – muitas vezes, também inventaram – laços entre Pinheiros e Manchester, entre o Capão Redondo e o Bronx, entre o Tatuapé e Berlim. Puxados pela adoção/invenção de um tipo de música, tais movimentos deram – e ainda dão – feição, jeitos, modos e modas a parcelas significativas da circulação urbana & cultural daqueles que cresceram em São Paulo entre os 60 e os 80.

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Quem melhor formulou essa atitude foi um integrante dos Inocentes, uma das principais bandas punk dos anos 80. Dizia o vocalista Clemente em 1982: “Nós estamos aqui para revolucionar a música popular brasileira, para dizer a verdade sem disfarces (e não tornar bela a imunda realidade): para pintar de negro a asa branca, atrasar o trem das onze, pisar sobre as flores do Geraldo Vandré e fazer da Amélia uma mulher qualquer”. Formada por garotos de classe média baixa da Casa Verde e da Freguesia do Ó, os Inocentes criaram o hino punk da cidade, “Pânico em SP”.

Na São Paulo dos anos 80, o clima de abertura política foi acompanhado por uma atmosfera cultural também mais aberta – mais cosmopolita e urbana e que procurava suas referências não no paraíso nostálgico do Brasil pré-ditadura que era, num certo sentido, o lugar da MPB, mas em outras cidades grandes, mais internacionalizadas do que Rio e Salvador. De uma maneira obviamente exagerada e que traía certo deslumbramento provinciano, São Paulo se sentia irmã de Nova York ou de Londres e inimiga do Rio de Janeiro.

Tanto a produção quanto o consumo cultural estavam marcados por esse desejo de urbanidade e cosmopolitanismo. O principal acontecimento cinematográfico era a Mostra Internacional de Cinema, que teve sua primeira edição em 1977 e , nos anos 80, tornou-se programa habitual no mês de outubro. Em um período em que praticamente deixou de existir o cinema brasileiro, a Mostra ajudou a construir uma cultura de cinema variada, trazendo cinematografias alternativas e independentes do modelo de Hollywood. Isso sem falar de outras oportunidades de acertar o passo com o repertório cinematográfico represado, entre outras coisas, pela censura e pelo começo da lógica do cinema em shoppings e que era proporcionado por cineclubes e mostras que ocorriam em outros espaços culturais (o MIS, por exemplo, realizou em 1978 uma retrospectiva, gratuita, de todo o Fellini até então. Nos anos 80, repetiu a dose com Pedro Almodóvar).

O mercado de livros experimentou também uma enorme diversificação e profissionalização, muito instigada pela política editorial da Brasiliense e por outras editoras paulistanas que seguiram seu modelo, como a Companhia das Letras. A experiência da imprensa alternativa chegou aos anos 80, mas gradativamente foi dando lugar à renovação dos cadernos culturais da grande imprensa, que absorveram parte dos assuntos e alguns procedimentos dos nanicos. A Folha, mais ágil, ocupou o lugar de jornal de oposição ao regime militar e identificou-se com as preferências culturais de seus leitores mais jovens, no que foi seguida, alguns anos mais tarde, pelo Estadão.

A identificação com o que era estrangeiro e a busca por referenciais culturais mais globais, que marcaram a década 1984-1994, nunca esconderam uma inquietude em relação ao elemento nacional.

Mesmo recusando o nacionalismo, a preocupação de pensar o Brasil não desaparece. Note-se na frase de Clemente que a objeção se faz a um certo conformismo identificado com as propostas mais nacionalistas que haviam se estabelecido como a cultura oficial. É um movimento de negação e combate, mas não de desprezo – e isso, acho, é o que singulariza essa geração.

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O que, de alguma forma, São Paulo reivindicava – e continua reivindicando, na verdade – é que o Brasil inclua sua urbanização desordenada, suas múltiplas imigrações, seu caráter subtropical.

Em São Paulo, não tem barquinho que vai, tardinha que cai, festa do sol. Tem, como na Inglaterra, fumaça, frio úmido e paisagem pós-industrial (Bernard Sumners, do New Order, que cresceu num bairro operário em Manchester, conta ter viso uma árvore pela primeira aos 8 anos de idade. A fala está no excelente documentário sobre Ian Curtis & Joy Division, exibido no Brasil em 2005, “Transmission”. Os bairros das bordas do centro expandido, em São Paulo, como aquele onde cresci, o miolo ou a “deep” Lapa, no período 70-90 também optaram por desarborizar tudo que podiam). Adolescentes dos bairros “do outro lado” do Tietê – Casa Verde, Limão, Freguesia do Ó – que o digam.

Em São Paulo, portanto, não teve bossa nova. Ou melhor, até que teve, uma mais cerebral, mais jazzística, mais escura, mais disfarçada, mas que ficou restrita a “um tempo-espaço inacessível demais – ou, numa boa, que era chata demais para esses caras & minas.

O grito de independência foi o punk rock. Nos anos 70, circulando como office-boys pelo centro da cidade e, sobretudo, por lojas de discos das Grandes Galerias, esses adolescentes traziam de seus bairros o comportamento de gangue, inspirados pelos punks ingleses e seu imaginário agressivo, e levavam de volta para o além-Tietê os preciosos vinis de bandas como Sex Pistols, Ramones, Exploited, Dead Kennedys.

Em 1982, a cidade tomou conhecimento do que se gestava nesses bairros quando o festival O Começo do Fim do Mundo, promovido pelo Sesc-Pompéia acabou em pancadaria entre punks e metaleiros. Em tom de ocorrência policial e alarme, o evento ganhou as primeiras páginas dos jornais e alguns minutos no “Fantástico”. O festival reuniu a nata do punk paulistano e do ABC – bandas como Cólera, Inocentes e Ratos de Porão, que a esta altura já tinham até seu primeiro registro em vinil, a coletânea “Grito Suburbano” — e grupos de outros Estados, como Rio e Brasília.

O alarme, assim como veio, foi, mas a presença cultural dos punks em São Paulo impulsionou uma série de projetos roqueiros, aqui ou em outras cidades (o contato com a cena punk de São Paulo foi essencial para que o Legião Urbana viesse tentar a sorte no Sudeste), e criou as bases do underground paulistano.

Algumas bandas, como Ira!, Ultraje a Rigor e Titãs (então conhecidos como Titãs do Iê-Iê) já circulavam em torno daquele que tinha sido um dos pólos de movimentação musical do início dos anos 80, o teatro Lira Paulistana.

Localizado estrategicamente na praça Benedito Calixto, em Pinheiros, na fronteira com a Vila Madalena, à época dois bairros com uma enorme densidade demográfica de estudantes da USP e intelectuais de esquerda, o Lira fora um dos centros nervosos de um grupo de músicos e bandas que ficaram conhecidos como a vanguarda paulista, que, a bem da verdade, não era nem muito de vanguarda e nem só paulista. Dois de seus principais representantes, Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, eram paranaenses. E talvez vanguarda fosse só um jeito meio preguiçoso de caracterizar as diferentes experimentações musicais e performáticas de grupos como o Rumo e o Premeditando o Breque. De qualquer maneira, havia ali um caldo de cultura musical que abrigava diferentes formas de experimentação musical.

O Lira, entretanto, não era o lugar mais adequado para o rock underground paulistano. A cena roqueira era fortemente influenciada pelo depressivo pós-punk inglês (Cure, Joy Division, Smiths) e anunciava isso no modo de vestir – coturnos e sobretudos pretos – e na angústia fin-de-siécle. Darks, góticos e punks tinham na decadência do centro de São Paulo um cenário mais próximo daquilo que viviam seus pares em Londres, Berlim ou Nova York. O eixo da movimentação deslocou-se então para bairros centrais como a Bela Vista (Carbono 14, Madame Satã) e Santa Cecília (Napalm, Val Improviso).

O underground paulistano gerou todo tipo de banda. Enquanto um grupo como os Titãs, com um pé na MPB e outro no punk paulistano, entrou facilmente no panteão roqueiro dos anos 80 – formado ainda pelos brasilienses Paralamas e Legião Urbana no Rio de Janeiro –, grupos como o Fellini, trio de eletrobossa avant la lettre, nunca saíram de uma confortável obscuridade cult.

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Enquanto isso, nas imediações da Estação São Bento do metrô, que também havia sido local de encontro dos punks em seus primórdios, uma nova música, que também poderia ser ouvida como importada, estava soando nas calçadas. Aliás, não era só música, mas também dança e expressão gráfica. O hip hop ensaiava suas primeiras aparições públicas nas ruas do centro – novo e velho. De um lado e outro do Viaduto do Chá, no mesmo largo São Bento dos coros gregorianos & monges beneditinos, e pelas imediações das ruas Barão de Itapetininga e 24 de Maio, ainda relativamente livres de ambulantes, dançarinos exibiam suas habilidades em passos complicados de break, munidos de um gravadorzinho doméstico e uma caixa de som básica para marcar o ritmo.

O processo de apropriação dos elementos da cultura hip hop pelos jovens da periferia de São Paulo desafia quaisquer interpretações apressadas. Nos anos 2000, há pouca dúvida sobre a importância da cultura hip hop como forma de expressão cultural, de afirmação de identidade, de construção de alternativas para a juventude excluída das periferias das grandes cidades brasileiras – e, particularmente, da enorme periferia que cerca a cidade de São Paulo -, mas vale lembrar que aquilo que hoje se tornou instrumento de conscientização e mesmo de intervenção social chegou, como outros tantos modismos, pelas vias da indústria cultural (e lendo um texto recente de Fióti sobre a Nação Zumbi em “Os Indiscotíveis”, descobri que as escolas foram espaços centrais também de gestação e trocas de experiências).

Mais do que o punk, o hip hop se tornou conhecido pelas imagens – clipes na MTV, filmes sobre rap e break, reportagens de TV mostrando as ruas de Nova York ou de Los Angeles infestadas de grafites, com garotos negros e seus enormes ghetto blasters, dançando e cantando nas esquinas do Bronx ou de South Central LA. O break, por exemplo, foi inicialmente imitado dos clipes de Michael Jackson, que à época do disco “Thriller” (1983) ainda não havia desistido de ser um rapaz negro e incorporava nos clipes de “Billie Jean”, “Beat It” os passos de dança que estavam efetivamente nas ruas. O grafite evoluiu da pixação por influência de artistas plásticos como Alex Vallauri, cuja enigmática Rainha do Frango Assado coloria as paredes das casinhas da Vila Madalena, os muros da recém-inaugurada avenida Sumaré e as laterais do túnel entre as avenidas Dr. Arnaldo e Paulista.

A música percorreu mais de um caminho. Ao longo de toda a década de 70, uma alternativa importantíssima de expressão da cultura negra encontrava seu espaço nos chamados bailes black como o Chic Show, que, durante anos, foi realizado no clube Palmeiras, no Parque Antártica, ali na fronteira entre Perdizes e Barra Funda. Nos bailes é que chegavam as novidades do soul e do funk norte-americano e que o samba-rock de Tim Maia, Jorge Ben, Cassiano e Hyldon encontrava sua audiência. Enquanto isso, a MTV trazia os dois lados do rap norte-americano, mostrando os clipes de grupos de rap que já estavam nas paradas de sucesso como o Run DMC com o megahit “Walk This Way” e os de grupos mais militantes e alternativos como o Afrika Bambaataa (“World Destruction”, “Planet Rock”) e Public Enemy (“Fight The Power”). E tanto a imprensa escrita especializada quanto as rádios “rock” que acompanhavam as novidades internacionais reverberavam os ecos da explosão do rap norte-americano.

Se não é tarefa fácil refazer a trajetória de um formato cultural, é um empreendimento ainda mais sutil compreender como é que a informação nova logra ser reprocessada e recriada por determinados grupos. No caso da cultura hip hop em geral e do rap em particular, pode-se arriscar a hipótese de que a enorme aceitação das linguagem do rap, do break e do grafite entre os filhos desterritorializados da periferia deveu-se ao poder do discurso de orgulho e auto-estima.

“O hip hop ajudou essa juventude marginalizada, geográfica e socialmente, a elaborar uma identidade negra, com uma formulação fortemente contraposta à ideologia da mestiçagem.” A força do rap foi capaz de criar alternativas em todos os campos. Se a rádio branca, de playboy, não toca rap, não importa: cria-se uma rádio comunitária no bairro. Se a gravadora multinacional não se interessa, a saída é fundar o próprio selo, inclusive para driblar os padrões de consumo cultural impostos pelo mercado e continuar produzindo discos em vinil em vez de CDs, como o Zâmbia, que lançou os Racionais MCs. Do rap conscientizador dos veteranos Thaíde & DJ Hum aos radicais e aguerridos Racionais MCs, o rap circula na Cidade Tiradentes, no Capão Redondo, no Jardim Ângela e, vez por outra, faz aparições breves nas bordas da cidade (e viva MC Guimê!).

Numa delas, a cidade branca e burguesa se surpreendeu ao perceber o tamanho e potência da periferia, quando um show dos Racionais reuniu 50 mil pessoas no Anhembi em 1997.

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E o que mesmo têm em comum a Zona Leste e os Jardins, além de estarem situados no mesmo perímetro urbano?

Na década de 90, esses dois pedaços da cidade tinham as melhores casas noturnas de São Paulo para quem se interessava por música eletrônica. Nos Jardins, boates pequenas, com ares de exclusividade e frequentadas maciçamente por público gay. Na ZL, lugares enormes para centenas de pessoas, com predomínio de casais jovens. Nos dois pólos, uma intensa efervescência em torno da música para dançar – cujos gêneros e estilos foram se sofisticando ao longo dos anos.

O que era simplesmente fruição tornou-se mais um terreno para invenção. Na virada dos 80 para os 90, com o barateamento da tecnologia e, sobretudo, de um aparelho chamado sampler, operações complexas de edição de música puderam acontecer em aparelhagem doméstica, inclusive ao vivo. Tocar música para animar a pista de dança passou uma atividade de criação e não apenas de reprodução, e os operadores de pick-ups, ou toca-discos, foram elevados ao status de artistas.

E o que tocava, tanto na Nation, dos Jardins, quanto na Toco, da Zona Leste, começava a tomar uma feição nacionalizada, por assim dizer. Eminentemente percussiva e rítmica, a música eletrônica constrói ambientes sonoros com quaisquer elementos que possam ser digitalizados, ou seja, tudo. À música de máquinas, os DJs paulistanos começaram a adicionar percussão de samba, de afoxé, de maracatu, sonoridades da bossa nova (que foi praticamente reinventada pela eletrônica nos anos 90) e feeling brasileiro.

O drum n’bass, estilo eletrônico se não de invenção, de consolidação brasileira, foi um dos resultados desse cruzamento. Os DJs Marky Mark e Patife, estrelas do circuito eletrônico mundial, têm trajetórias típicas. Ambos surgiram nas casas noturnas do Tatuapé, fizeram suas passagens pela cena clubber dos Jardins e se mandaram para Londres (a música eletrônica, mais do que qualquer outro gênero pop, é globalizada ao extremo).

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Não se pode esquecer que, na mesma medida em que criou circuitos da música pop, São Paulo acolheu diversos estilos de outros cantos brasileiros que acabaram revelando sua força por conta da reverberação paulistana. Claro que sempre que os acolheu, o fez a sua maneira, ou seja, transformando. Foi assim com o mangue beat, cujos principais cérebros, Chico Science e Fred Zero Quatro, tinham plena consciência de que era preciso “acontecer em São Paulo”, ser adotado pelos paulistanos, para que acontecesse alguma coisa. Tanto tinham razão que Otto, ex-percussionista e uma das principais revelações da música brasileira dos anos 90, encontrou sua identidade e reinventou o mangue beat a partir do drum n’bass quando se uniu aos produtores de música eletrônica Apollo 9 e Bid.

O forró, aquele mesmo dos bailões populares que reuniam os migrantes nordestinos no Largo da Batata, em Pinheiros, aqui tomou uma feição mais amena, por força do hábito da juventude de classe média de viajar para as praias nordestinas, e o nome de forró universitário.

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A última moda dessa cidade novidadeira e inquieta são os coletivos de produção musical. Meia dúzia de músicos-produtores e produtores-músicos, alguns computadores e um espaço de encontro (que, pode, inclusive, ser virtual) e aí está um núcleo de criação e agitação cultural. Rompendo com a ideia de um grupo sempre com os mesmos integrantes, nos coletivos, os indivíduos reúnem-se e agrupam-se de acordo com o projeto, fazem aproximações entre artistas e gêneros diversos e distintos, trabalham para diversos meios. Coletivos como o Instituto estão reiventando não apenas a música, mas a maneira de conceber a criação musical e questionando a noção de autoria (ouça-se o maravilhoso tributo a Luiz Gonzaga, Baião de Viramundo).

Obviamente e, mais uma vez, não foi aqui em São Paulo que os coletivos apareceram. Mas não importa: é a maneira mais nova e adequada para manter o sangue musical dessa cidade circulando livremente.

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E mais? Bom, o texto tem de acabar em algum momento. Mas vale dizer algumas coisas, quase como apontamentos, aqui. Olhando a partir do ano da graça de 2004, o Brasil, #sópordesuavemaria, mudou muito. A indústria fonográfica se esboroou e permanece como uma imagem distante, com a música acontecendo (ao vivo, hoje, pode estar em qualquer lugar) nas redes de todos os jeitos. Desde 2012, São Paulo é uma cidade mais aberta, mais solar e mais inclusiva. Tem de reescrever esse texto de ponta-a-ponta, mas isso é tarefa revolucionária URGENTE de quem está nas ruas fazendo música – e tem tantagentetantagente.

Chuck D e Flavor Fav (de frente para a plateia), na inauguração do Arena Tietê - Foto: Dafne Sampaio

Chuck D e Flavor Fav (de frente para a plateia), na inauguração do Arena Tietê

Só nesta semana, sei que vai ter Santo Forte de Rua (Tutu Moraes & trupe botando a MPB para ferver em algum ponto do centro de São Paulo, olha isso que beleza!). Você (eu, no caso) sai do trabalho na sexta-feira e anda pela dom José Gaspar e tem um samba nervoso, divertido, rolando, sei lá, entre 18h e 21h, desdizendo o mantra atribuído a Vinicius.

Com tudo isso, São Paulo não é fácil, não. Mas com vias mais desobstruídas e canais mais limpo, está retomando sua vocação de lugar de encontro. E por isso, Gil, o aqui e agora está ficando cada vez mais lindo.

Bia abramo é jornalista e participa de vários projetos de comunicação digital da Prefeitura de São Paulo
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Vange Leonel, amazona

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36085d3c-72f1-46e6-a9f7-b9e01b24c43cAcho que nunca fiquei tão feia na vida como no dia em que decidi me vestir de drag king para ir numa festa a caráter, com a Vange e a Cilmara, em São Paulo, lá pelos idos de 2008. Vocês imaginem, gosto (muito) de fantasia e de dress code. Eu gosto de codes. Porque muito pequena entendi intuitivamente (e com a ajuda de uma mãe nascida dentro de um filme de Almodóvar) que boa parte da vida se resume a isso: fantasia e dress code. Atenção, menina: muito respeito e muito amor pela fantasia e pelo dress code, quando ele denota escolha e diversidade.

Então, quando veio o convite das minas para ir nessa parada drag king, não pensei duas vezes: sequestrei umas roupas velhas do meu cunhado e me joguei no bar, afobadíssima. Em alguma parte, estava também muito curiosa de entender que tipo de homem eu poderia ser. Fiquei, literalmente, a mais perfeita tradução do bofe de rodoviária que baba na camisa azul depois de perder o último comercial para Itu.

Decepcionada com essa pressa que me faz derrapar no bermudão cáqui e abotoar errado a camisa xadrez, não cabendo onde eu deveria caber, vi duas deusas do estilo me acenando divertidas do balcão. Era mais ou menos como se o tio-do-celular-na-cintura encontrasse os astros de Velozes e Furiosos. Mas nada que pudesse abalar minimamente a imensa e poderosa alegria que eu sempre senti de passar uma noite com essas duas, uma espécie de alegria saltitante do tipo que me faz falar rápido e ter vontade de abraçar as pessoas.

Nossa amizade nasceu aos poucos, em algum lugar entre 2003 e 2004. Começou no grupo de amigas gays (tão queridas!) que eu frequentava na época (e que, oxalá beleza, frequento ainda, mesmo virtualmente) como boa lesbiquinha cult (haha), numa São Paulo já urbana e moderna, mas ainda tão carente de encontros como esse. E de lugares para encontros como esse. Eu olhava de canto de olho para essas duas, Cilmara e Vange, Vange e Cilmara, numa época em que era um luxo e uma alegria pra gente poder encontrar a cantora bonita que escrevia tão bem sobre nossos encontros – e desencontros. Sempre me senti meio caipira nesse tipo de situação. Porque as outras minas já estavam ligadas em todos os “codes” mundiais, tinham um pioneiríssimo blog supermaneiro de – pasme! – humor lésbico, e eu – dispersa e misturada – tinha dificuldade de me apropriar daquilo tudo e oferecer uma resposta coerente, mesmo sendo muito bem acolhida. Um bocado hipster demais para mim, mineira da gema.

Caipira, mas bem da safada, eu ficava fazendo performance e soltando umas ideias para ver se eu fisgava essa dupla do barulho, linda de morrer. Em algum lugar essa estratégia piolhenta deu certo, nunca pelos motivos que eu imaginava, mas sobretudo pela imensa generosidade dessas duas e pela vontade de aproximar pessoas que elas sempre tiveram. E também pela sorte inenarrável que eu tenho ao fazer amigos, como se o computador central D.E.U.S.A. 17X228 tivesse mandado uns e-mails para meus queridos que já estavam no planeta antes de eu descer, dizendo algo como “olha, ela é uma figurinha desajeitada, precisa tomar conta”. E meus amigos tomam. Excepcionalmente bem. Entre eles, Vange e Cilmara.

Mas a sereia Vange Leonel eu fisguei mesmo no dia em que, em 2004, tive a ideia feliz de fundar uma comunidade no Orkut que nos deixasse contar histórias livremente, inspiradas em mitos, reais ou inventados. Que nos deixasse ser o que quiséssemos ser. (Fantasia e dress code, tá entendendo? Laerte, tá entendendo? Vange Leonel, tá entendendo?)

Como mulher adulta que cresceu lendo as aventuras de Monteiro Lobato, eu queria recriar uma espécie de Sítio do Picapau, livre, solto, hippie, egípcio, cigano, interestelar. Então criei Mitorama. E então se estabeleceu entre Vange, eu, e várias pessoas que foram chegando, o Pedro entre elas, uma espécie de mágica.

Fundamos civilizações. Ressuscitamos anti-heróis. Aprendemos lendas amazônicas e reinventamos tragédias gregas. Mas, acima de tudo, acima de tudo, o Mitorama nos deu acesso, de uma maneira tão estranha quanto verdadeira, a uma intimidade de pé de ouvido, de pé de alma, num mundo absolutamente neófito nesta arte-provocação que é trocar impressões em público.

Quando soube do inevitável sobre a Vange, nesse horroroso 14 de julho último, eu estava sozinha no meu pequeníssimo apartamento em Paris, onde moro agora. Uma das minhas primeiras reações, depois de tentar avisar amigos comuns que, como eu, também moram fora do Brasil, foi mergulhar na imensidão do Mitorama. Era onde eu poderia ainda conversar com ela.

Quem conheceu a Vange de outras esferas não pode imaginar a imensa delicadeza e entrega dela ao escrever sobre seus medos, num tópico em que falávamos sobre isso. Como aquela pessoa reservadíssima poderia ser ao mesmo tempo tão entregue, e tão generosa? Tem uma harmonia no texto dela, em todos os textos dela, um negócio esquisito de lindo. É claramente pensado, mas é intensamente sentido. Não deborda, transborda. Irradia. Comunica. Vai lá, encosta o indicador no ombro da humanidade e dá liberdade para voar. Acho que nunca conheci ninguém mais elegante. Bastilha pura.

E o Mitorama não foi o único voo que demos juntas (e que alegria poder lembrar disso, que alegria). Ainda em 2004, inventei um outro negócio chamado “Música Afetiva N. 1″. Conversei com o dono de um bar, arrumei uma mesa de som, a Cristina (Naumovs) fez um lindo flyer e eu convidei a Vange, o Pedro, e a Fafi (minha companheira de palco na Cia Cachorra) para discotecar, mas discotecar contando, no microfone, por que aquelas músicas foram importantes pra gente.

Dolores_DuranVange começou com Dolores Duran, você lembra, Pedro, em homenagem à mãe dela. Mãe elegantérrima, como a filha, que eu conheci numa noite gostosa na praça Roosevelt, depois de assistirmos a uma apresentação de Joana Evangelista.

(Nota do editor PAS: lembro anuviadamente, Marcia, como lembro anuviadamente que coloquei músicas sobre passarinhos presos, e sobre olhos, e sobre ver e não ver – tipo “Assum Preto”, não sei se na versão do Luiz Gonzaga ou na da Gal Costa. Fecha parênteses-intromissão.)

Essas coisas todas são todas tão importantes pra mim. Tão importantes. Gosto sim de conhecer pai, mãe, irmão, amigo, namorada dos meus amigos. Gosto de conhecer quem meus amigos amam. Talvez por isso, comecei a levar nas nossas festinhas, na casa da Vange e da Cilmara, toda namorada nova que eu conhecia. Era meio o abracadabra da Porta da Esperança do Silvio Santos misturado com o Show do Gongo. Todas sempre foram magnificamente bem recebidas na casa dessas duas, uma elegância só. E quando um cara ou outro frequentava desprevenido a minha cama, Vange me reservava a mesma generosidade e o mesmo humor de pé de ouvido, ela que nunca teve medo de animais híbridos multiformes, muito pelo contrário, ela que adorava a diversidade.

Eu poderia ficar aqui centenas de horas escrevendo sobre a maneira perspicaz que Vange teve de invadir tranquilamente minha arrogante e destrambelhada carapaça pseudo-performática e de encostar seu ombro na minha humanidade, morrendo de rir do meu susto. Sobre como ela fazia a minha sereia borbulhar de alegria e de festa e de orgulho. Sobre como eu aprendi sobre música popular brasileira (e pós-punk, e música em geral) com ela, privilegiada que sou de tê-la tido como interlocutora. De como ela me ensinou sobre hormônios, quando descobri que tinha Hashimoto. De como foi sempre bom falar política com ela. O olhar verde cintilante dela quando ria de uma boa piada. E sobre como foi bom temos rido tantas vezes juntas.

Pensei muitas vezes se deveria escrever alguma coisa sobre ela, aqui, para o FAROFAFÁ do Pedro, quando ele me convidou. Porque escrever sobre a Vange significa escrever sobre mim mesma. E os pseudo-performáticos, como eu, morremos é de medo de mostrar lá no fundo os quinhões da nossa alma. Então decidi que eu deveria escrever, escrever sim, escrever sobre como me deixa desarvorada o fato de ela ter partido tão rápido, como não consigo imaginar chegar a São Paulo e não poder aprender mais sobre tudo com ela, me impressionar com suas novas botas elegantes, admirar as novas aventuras de Vange e Cilmara, Velozes e Furiosas.

Hoje já faz quase quatro meses que a Vange pegou carona na cauda do cometa flamejante. Curiosamente, ao contrário dos meus amigos brasileiros, que andam vivendo verdadeiras aventuras de Saramandaia, este foi um período de enorme introspecção para mim, depois de um mestrado tardio conquistado ex nihilo no melhor estilo sangue suor & lagrimas, o estilo jezebel. Depois de uma longa recuperação de um tornozelo estilhaçado em pedacinhos, e duas cirurgias reconstitutivas, gesso & parafusos, o preço de ser uma sereia de Oxum da Rive Gauche, nos anos da Odisseia no Espaço.

Este ano de 2014 certamente ficará incrustado na minha pele da alma, aquela derme onde a gente deixa as impressões pousarem e criarem raízes. Hoje, 5 de novembro de 2014, Cilmara recebe, em Brasilia, das mãos da presidenta que eu ajudei a eleger, a medalha de cavaleiro da Ordem do Mérito, que homenageia finalmente Vange Leonel. A gente nunca se cansa de acreditar que, petit à petit, é possível sermos mais justos, mais solidários, mais alegres, menos burros.

Paris em novembro deveria ser mais cinza. Não está. Este início de inverno verdejante me desconcerta. Parece um pouco de Brasil neste bairro (20ème) onde nasceu Edith Piaf, sinalizando nossa desti-nação ao mundo, hoje e para sempre estrangeiros. A lembrança dela passou algumas vezes pela minha janela, feito um beija-flor do parque de Belleville, se no parque de Belleville (do lado de casa) existissem beija-flores. Nao tem beija-flor, Vange. Mas tem coelho e galinha na horta comunitária do bairro. Tem velhos senhores franceses com bengalas de cartão postal sentados nos bancos. Moças de véu vindas do Margreb islâmico. Turistas ingleses adolescentes e suas cervejas e bermudas sobre bicicletas. Essa diversidade que você gosta. De qualquer forma, plantei um abacateiro aqui na minha janela. Ele cresce impávido colosso. Venha pousar de quando em vez.

Nas vésperas de vir embora para Paris, em 2009, recebi um convite de Vange e Cilmara para tomarmos uma cerveja juntas. Fui, sem imaginar o quanto aquele encontro-despedida seria importante para mim. Despedir é importante. É como reencontrar. Precisa fazer, gente. Precisa. Despedir-se dos amigos é uma deferência com quem a gente gosta. É sinal de respeito, e de amor. Como a Cilmara disse para o Pedro, no velório de Vange, na festa da Vange: “Quem não sabe morrer não sabe viver”. Bingo.

Eu me despeço dela, então, com esse texto despretensioso, e cheio de vontade. Esperando poder polinizar (expressão do Pedro) pessoas mais jovens do que eu com a mesma fúria elegante. Esperando me tornar elegante. Vange, você vai ver só meu superdisfarce de drag king quando eu for finalmente te encontrar, você vai ver. Dress code na veia, nega. Você vai ver só. Eu te amo.

 

(Márcia Bechara é jornalista, escritora de Casa das Feras Métodos Extremos de Sobrevivência, atriz etc. e tal. Sob o dress code de Jezebel, compôs e interpretou o clássico da bossa supernova “Meu Cu Vinicius”, #ProcureSaber).

 

São Paulo e dona Francisca

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Aconteceu numa segunda-feira de chuva em São Paulo, 3 de novembro de 2014, dois dias após alguns milhares de cidadãos paulistanos saírem pela avenida Paulista pedindo o impeachment de uma presidenta recém democraticamente reeleita (eles têm esse direito). Parte desses, dizem que uma minoria, pediam uma intervenção militar para tirar do poder a primeira presidenta mulher da República Federativa do Brasil, 50 anos depois de uma intervenção militar pedida pela população civil e com apoio norte-americano, que deveria abrir caminho para eleições democráticas um ano depois, mas durou 20 anos de trevas. Não, eles não têm esse direito, não mais.

São Paulo sempre foi isso aí que se escancarou nesse interessante ano e pouco desde junho de 2013, reacionária, racista, xenófoba, arrogante e estúpida, mas sempre foi muito, muito mais que isso. Esses aí são o aspecto mais deplorável de uma cidade que também fermentou muita coisa legal, apesar de tudo sempre conspirar contra. Nessa noite de segunda, caminhava eu pelo chão molhado das ruas do centro de São Paulo, como é sempre molhado o chão das ruas de São Paulo cantadas pelos músicos desta terra, aqui nascidos ou acolhidos. Com o humor  afetado pelas notícias da tal manifestação de sábado e por uma tão paulistana sinusite alérgica, normalmente estaria em casa, mas tinha um encontro com a música que se produz agora, neste novembro finalmente molhado de 2014, nas franjas mais cabeçudas, na falta de palavra melhor, da cultura tão diversa e tão rica e tão autocentrada e tão aberta de São Paulo. Seria um encontro longo e intenso, que me impeliu, mesmo estando lá como mero ouvinte e não jornalista, crítico ou o que o valha, a escrever sobre essa noite.

Era noite do III Grande Concerto da Casa de Francisca, realizado pela primeira vez no tão simbólico Theatro Municipal de São Paulo, após duas edições no não menos simbólico e tão antagônico Teatro Oficina. Ceder o maior e mais histórico palco paulistano para seis dezenas de músicos paulistanos ou que se encontraram aqui, de uma diversidade atordoante, num evento de dimensões épicas que teve cinco horas de duração, foi iniciativa pessoal, dizem, do secretário municipal de cultura, Juca Ferreira, e apoiada pelo prefeitão pop Fernando Haddad, que no fim de semana mitou, como dizem os jovens meméticos nas internets, ao pixar um Pato Donald (!) no túnel de acesso à Paulista, e na segunda recebeu um aplauso que esteve entre os mais efusivos da noite. Talvez só esta impressionante dama negra que é Juçara Marçal tenha rivalizado com o prefeito em aclamação pelos mais de mil paulistanos que encheram as cadeiras de veludo vermelho do Municipal em plena segunda feira chuvosa.

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Fui informado do concerto por um amigo que entende do riscado e disse que este seria o “grande evento da música em São Paulo neste ano”. Nunca fui à Casa de Francisca (foto acima), mas sei que é um espaço já quase mítico da música de São Paulo, fazendo companhia a outros lugares que viraram lenda, como o teatro Lira Paulistana, para citar apenas um. Sei que a pequena casa tem apenas 44 lugares e as reservas são disputadas. Talvez por isso mesmo, nunca fui. Mas conhecia parte dos mais de 60 músicos anunciados para se apresentarem em três blocos, cada um com direção artística de um artista representativo da música mais inquieta da cidade, e sabia que simplesmente precisava estar ali para ver e ouvir o que eles iriam fazer. Como disse, não fui preparado para escrever sobre o que aconteceu naquele palco, jornalisticamente. Fui tão relapso que nem o programa do espetáculo peguei pra me guiar agora. Mas senti que o que aconteceu foi histórico o suficiente para merecer esse registro.

(Nota-intromissão do editor-jornalista PAS: acontece, meu caro Paulo, eu também vivo esquecendo de fazer anotações das coisas…)

Enquanto muita gente ainda chegava, o concerto começou com um solo de sanfona de Lulinha Alencar, que valeria por si só, escancarando o o quão profunda é a sanfona do sertão nordestino de Luiz Gonzaga e tantos outros. Apareceu o diretor musical do primeiro bloco, o pianista Benjamim Taubkin, que deu o tom jazzístico e mais “acadêmico” da primeira parte do concerto. O ponto alto foi a presença necessária de pai e filho, Manoel e Felipe Cordeiro, e sua eletricidade paraense, precedida pela não menos necessária fala de Taubkin de que “A única coisa que faz sentido neste país é norte, sul, leste, oeste, juntos”, lembrando a vergonhosa xenofobia de parte daquela que se considera “elite”  de alguma coisa nesta cidade e neste país.

A primeira evocação a Heitor Villa-Lobos foi de Nelson Ayres, pianista do Grupo Pau Brasil, antes de tocarem um jazz sobre a ária das “Bachianas Brasileiras Nº 4″, lembrando que 88 anos atrás, durante a Semana de Arte Moderna de 1922, o maestro regeu a peça naquele palco, com os pés descalços. A inevitável referência à  Semana de 22 veio também por José Miguel Wisnik, que citou Macunaíma, de Mário de Andrade, e Renato Braz, que cantou em seu tenor uma canção da peça O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, encenada pelo Oficina de Zé Celso Martinez Corrêa em 1967, despertando a ira dos anticomunistas que ainda estão vivos e andando entre nós.

A primeira parte se encerrou com a primeira das grandes damas negras que se apresentariam, Alaíde Costa, que aos quase 80 anos fez questão de interpretar à capela naquele teatro as “Bachianas Brasileiras Nº 5″, e não ouso dizer que aquela interpretação que me levou às lágrimas foi tecnicamente falha. Teve mais boa música no primeiro bloco, com batidas afro e jazz latino, mas esses foram os momentos simbolicamente mais importantes para esta narrativa.

No segundo bloco, Arrigo Barnabé, personificação da improvável e irreproduzível vanguarda paulistana conhecida nos anos 1980, mas que germinou ainda no final da década de 1970 numa Universidade de São Paulo urrando por democracia e liberdade em gritos atonais e dodecafônicos. É música difícil, mas me peguei balançando ao ver as novas claras e os velhos crocodilos dodecafônicos sobre a prosa de narrador da escuridão da cidade de Arrigo. Entre essa narração televisiva/mundo-cão e a singeleza do “Dia Útil” de Maurício Pereira percebi o quanto a música falante paulistana gosta de falar do cotidiano sempre frenético-urbano e tão prosaico dessa metrópole que amamos odiar.

Os instrumentos, claro, sempre estão nessa afinação que reproduz os barulhos da, conforme os Mutantes (que não estavam ali mas estavam), maior cidade da América do Sul. A polícia, outro orgulho dos tristes paulistanos que marcharam sábado pela Paulista, foi lembrada pelas imensas Vange Milliet e Suzana Salles, em urro primal sobre o peso de Itamar Assumpção, outra ausência que lá estava, e sua banda Isca de Polícia. Elas lembraram a todos ali que, se chamar polícia, elas querem matar, matam a cobra e mostram o pau, e a boca espuma de ódio.

Já era quase meia-noite quando começou o terceira e última parte, mas boa parte do público permaneceu, afinal esse bloco traria a amostra da mais atual música paulistana, cujo símbolo é o guitarrista Kiko Dinucci, cria do punk torto da garotada hardcore da qual eu era parte na adolescência e que inventou um novo jeito de tocar guitarra ao se encontrar com as batidas do candomblé e com o samba de São Paulo (sim, ele existe), de redutos irredutíveis como o Ó do Borogodó, ponto de peregrinação dos muitos gringos que passam por aqui e que foi recentemente salvo da especulação imobiliária por uma família tão tipicamente paulistana.

Foi esse samba torto que não consegue e não quer (e não precisa!) se desvincular do barulho punk rock que se impôs em São Paulo entre os anos 1980 e 1990 que sintetiza a música dessa cidade que quer ser Londres, Manchester, Nova York, mas sempre estará na América do Sul, no Brasil. Portanto, é índio (os bandeirantes matavam índios, mas também eram índios), é de terreiro (Bixiga e Liberdade são tão negros quanto são italianos e japoneses), é a plebe fugida da recém-unificada Itália que chegou aqui por baixo, como a nossa mais perfeita tradução, Adoniran Barbosa, mas agora se arvora xenófoba como os racistas italianos que ficaram lá (w meu sobrenome me autoriza dizer que sim, nós italianos brasileiros somos racistas).

Faltava o rap, e foi justamente através de Adoniran, cronista da vida do lado de baixo da metrópole como os rappers de hoje, que Emicida, esse talento absurdo da prosa, trouxe mais uma mácula desta terra: a falta de um teto para tantos dormirem, atualizando a “Saudosa Maloca” e o “Despejo na Favela”, situando-os em uma ocupação de prédio vazio no centro da São Paulo atual, despejada por Justiça, governo e polícia desta terra em conluio com os interesses econômicos do qual são lacaios.

Ainda faltava o final, com o Metá Metá, que melhor mistura todas as contradições paulistanas e por isso é o grupo mais importante da música de São Paulo hoje, com a voz assombrosa de Juçara Marçal, acompanhada pela guitarra de Kiko Dinucci e o saxofone também torto e genial de Thiago França, e com a rima instantânea de Leandro Emicida fazendo “Obá Iná”, grito afro-candomblé que fez todos se levantarem das cadeiras de veludo e dançarem.

Quando finalmente acabou, 1h da manhã em ponto, eu saí pelas ruas ainda molhadas, vazias e silenciosas desta cidade que ainda amo como parte do meu corpo, sabendo que precisava escrever este texto. Não preciso falar que o formato do show é uma insanidade completa sob o aspecto logístico e para a resistência do público, ou que faltou um fio condutor na forma de talvez um MC, e que houve altos e baixos, coisas de que eu gostei menos ou não gostei. O que importa é que, neste momento, com essa feíura de São Paulo expondo seu aspecto mais grotesco sem vergonha, é como é bom saber que tantos quanto são os corações cheios de ódio e rancor são os que querem viver uma vida boa neste lugar, e narrar essa experiência traduzindo-a sob a forma da música. Que bom.

(Paulo Noviello nasceu em São Paulo há 32 anos e sempre viveu na cidade. Formado em jornalismo pela ECA-USP, com um trabalho de conclusão de curso sobre a vida noturna em São Paulo, é apaixonado pela cidade e pela música. Atuou em veículos como Folha Online, UOL e Terra e atualmente trabalha com comunicação institucional.)

Na Belém-Brasília

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Na BR135, São Luís do Maranhão começa a virar interior numa pista duplicada cujo canteiro central está repleto de lixo – saquinhos plásticos, garrafas pet, cacarecos de ex-mobília.

O olhar fica bipartido, estrábico.

O olho direito, assediado pela nordestinofobia, formula mentalmente o raciocínio-clichê dos nascidos no ~Sul~: a família Sarney não se preocupa sequer com a limpeza dos próprios quintais.

O olho esquerdo, buscando apoio e suporte em algum tipo mais material de realidade, lembra-se imediatamente do estado onde mora, São Paulo, dito o mais rico e desenvolvido do país, cuja capital é rasgada pelos rios Tietê e Pinheiros, muito mais sujos e espúrios que uma centena de canteiros centrais de São Luís.

Para quem mora no Sudeste, nordestinos são sempre os outros.

Os olhos esquerdo e direito guerreiam, e quem decide qual deles vencerá a batalha campal é você, em você. Estar sozinho na BR135, onde a pista já não é mais duplicada, é colocar os dois olhos no mesmo ringue e deixar que eles mesmos façam da guerra a paz, ou vice-versa.

Os nomes começam a aparecer, falados ou escritos, conforme a viagem diurna vai soluçando de rodoviária em rodoviária. Bacabeira. Açailândia. Pedreiras. Serra das Alpercatas? Arari (a primeira rodoviária com jeitão de Brasil novo, conforto e simplicidade para maranhenses e não-maranhenses). Pindaré-Mirim. Assentamento Babilônia. Assentamento Babilônia. Assentamento Babilônia. Buriticupu com parada para “merenda”.

Já sei faz tempo que minha jornada interior será pelo Brasil indígena, e os nomes dos lugares só fazem comprovar a obviedade que a guerra dos olhos tenta o tempo todo obnubilar: indígenas exterminados é o caralho, nosso nome camaleão é tupi-guarani.

É certo que pré-selecionei no smartfone as músicas que iria trazer, mas é na BR135 que minha infalível DJ Aléa Tória escolhe com maestria a carioca Diana, “Ainda Queima a Esperança” (1971), para aquecer meu coração permeada à interioridade goiana de Odair José e à interioridade litorânea cearense de Karim AïnouzO Céu de Suely (2006) e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2010). O olho esquerdo golpeia um direto no direito e responde: volto porque preciso, viajo porque te amo (meu BraSil, eu te amo!).

A incrível quantidade de jumentos pastando plácidos às beiradas da BR135 enche meus olhos de lágrimas e me faz latejar de saudade de um herói que nunca conheci, o pernambucano Luiz Gonzaga, “O Jumento É Nosso Irmão” (1967). A nordestinofobia matou Luiz Gonzaga dia após dia, em cada um dos anos e meses que ele viveu.

Imperatriz, no sul do Maranhão, quase divisa com o Tocantins, é uma cidade nervosa à véspera da véspera do Natal. O rio Tocantins, lindo e majestoso como são os rios não-poluídos, deita-se meio deixado de lado num dos cantos da cidade. Cada povo à sua maneira, maranhenses e paulistas, esquerdos e direitos, gostam inexplicavelmente de fingir que não são (somos) alimentados e nutridos pelos rios. Será porque não querem(os) lembrar que são (somos) todos índios?, todos pescadores?, todos soltos?, todos nus?, todo dia de índio?

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Historietas se acumulam no hard disk que fica entre o olho direito e o esquerdo, já ameaçando perder espaço físico para informações mais novas.

Há a senhorinha no ônibus, que, dos mais de 700 quilômetros entre São Luís e Imperatriz, seguramente conversou pelo menos 500 quilômetros, com animação inesgotável. Reclamona como costuma sempre ser o olho direito (às vezes até o esquerdo), sustentou que por amor à função jamais vai se aposentar. E criticou o conhecido fulano, que tem o desplante de acumular dois aposentos. E discursou a favor do casamento, para depois discursar contra, para depois discursar contra e a favor. Por favor, pare agora, senhor juiz, disse o rapaz de Wanderléa, Teresina, Piauí, Memphis, Tennessee.

Müller, imperatrizense filho de paranaenses de ascendência germânica, que me conta que todos em sua família aprendem a dirigir muito cedo – justamente a mim, que sou paranaense, mas jamais aprendi a dirigir (nem) carro (nem minha própria vida). Ele, Müller, dirige (carros) desde os 6 anos de idade. Um dia desses, três de seus primos, irmãos entre eles, saíram à toda pela BR135 (imagino eu) e acabaram abalroados por uma carreta. O primo de 16 anos morreu com as mãos cravadas no volante, mas quem parecia dirigir era o primo de 12, morto no banco do motorista. O de 14, acomodado no banco do carona, também morreu, entre os 12 e os 16, sem tempo para esquerdo nem direito.

O frio de ar-condicionado na BR135, no calor de interior não-sertanejo do Maranhão, não se reproduz no próximo trecho, os 600 e tantos quilômetros de Imperatriz até Palmas, capital do Tocantins. O microônibus é quente, morno, repleto de brasileiros e brasileiras que sobem e descem e descem e sobem a cada rodoviária.

O caminho agora é a BR010, a Belém-Brasília, ecos quentes dos índios paraenses que pronunciam “castânia”, “pamônia” e “tapioquínia” e que por vezes fazem remix com as “cashtanhas” de São Luís do Maranhão. Belém-Brasília, Transbrasiliana, Transamazônica, Iracema, uma Transa Amazônica (1976), BraSil grande. O microônibus em que viajo é da companhia Jam Joy, mano, Jam Joy. BraZil pequeno. Milho verde. Maçaroca.

Um laivo de bom humor invade uma ou mais cidades maranhenses cujos nomes não consigo descobrir. Churrascaria Pit Bull. Restaurante Costa pra Rua. Restaurante Babado Novo (é do babado esse restaurante!). Balneário Lepo-Lepo.

O muro pixado corrobora: “Em 2015 desejo a todos muita paz e muita sacanagem”. Trata-se de uma pixação anti-PIG (Partido da Imprensa Golpista) por excelência, em pleno império tecno-agrário dos Sarney. Nem tudo é resmungo na divisa-nariz entre o olho direito e o esquerdo. Desejo muita paz (no sentido não-católico) e muita sacanagem (no sentido não-católico) para todo mundo em 2015!

Mais nomes, mais índios, uns tantos caubóis: Ribamar Fiquene. Vitória do Mearim. Estreito (a ponte de ferro Maranhão-Tocantins, a memória do trem, o sangue no linho branco, Espírito Santo de Roberto Carlos, como você ousa viajar pelo interior brasileiro sem Roberto Carlos, DJ Aléa?). Darcinópolis. Gardelândia. Araguaína. Araguatins (Araguaia + Tocantins, rio sobre rio). Colinas. Presidente Kennedy (???). Guaraí. Tabocão. Chambaril. Miranorte. Miracema do Tocantins.

Bacabas, buritis, juçaras, outros cocos, outras palmas, outros açaís.

Meu jovem vizinho de poltrona no ônibus, de que esqueço de perguntar o nome, está vindo sem paradas para abrigo de Fortaleza, no Ceará, para passar o Natal com a mãe, que mora sozinha em Xambioá.

Xambioá. Xingu. Rio Araguaia. Guerrilha do Araguaia, José Genoino. Ditadura civil-militar. Ditabrandas PIG que dizimam políticos.

Meu jovem vizinho de poltrona no microônibus Jam Joy tem traços indígenas evidentes (será?) e carrega um cabelo moicano como o meu que sou índio loiro do Paraná. Antes de trepar no pequeno Jam Joy, ele havia chegado a Xambioá, após dois dias e meio de viagem, apenas para descobrir que a mãe se mudou para Palmas. E taca-lhe pau, jovem tchucarraMÃE, mais 500 e tantos quilômetros, ainda é 24 de dezembro, aproxima-se a data escravagista do Natal, há de dar tempo!

Mas, enquanto isso, como é deslumbrante a paisagem do Tocantins, especialmente de Aragauína a Palmas! Pertencente à região Norte e à Amazônia legal, o estado ainda é floresta e já é cerrado, tem a ilha do Bananal e o “deserto” do Jalapão, é seco e úmido, olho esquerdo e olho direito. Parece rico, certamente é rico, próspero, verde, deslumbrantemente verde, terra da ministra escravagista da agricultura, Kátia Abreu.

Palmas inunda meus dois olhos de surpresa, espanto, admiração e encanto. Capital caçula planejadíssima, vice-miss bumbum das sedes administrativas das unidades da federação, nasceu em 1989 como uma Brasília um pouco mais careta, mas muito mais espaçosa – se um dia eu não aguentar mais a estreiteza das ruas paulistanas, já tenho para onde migrar.

Bisneto de índios javaés, o guia Eudes me leva à ilha do Canela, no rio-mar Tocantins, e às cachoeiras do Taquaruçu, distrito montanhoso de Palmas, no alto da serra do Lajeado. Bonecos de neve e perversos papais noéis ornamentam a praça verde de Taquaruçu, inverno no verão, direito comendo as canelas do esquerdo, pelo menos Jesus Cristo não está aqui. Kátia ainda será governadora do Tocantins, me garante e promete o javaé Eudes.

IMG_9640Lá no alto da serra encontro um Ponto de Cultura, a linda Casa de Caboclo, dirigida por tocantinenses que monitoram a acarinham as visitas à serra. Rio também é cultura. Gilberto Gil. Ana de HollandaMarta SuplicyJuca Ferreira: ex e futuro ministro da Cultura. Vesgos, olho direito e olho esquerdo apontam para o mesmo nariz-chapadão.

Eudes me dá aulas de geografia brasileira e de música brasileira.

Alerta para o fato de que o Tocantins, centro do centro do Brasilzão, faz divisa com nada menos que seis estados: Maranhão, Piauí, Bahia, Goiás, Mato Grosso, Pará. Norte, Centro-Oeste, Nordeste, tudo que o olho caolho direito mais abomina na vida.

Apresenta-me nomes de músicos populares na região. Genésio Tocantins (comprei um disco!). Braguinha Barroso (comprei um disco!). DorivanJuraildes da Cruz (conheço!, já tenho discos!).

Saindo de Palmas, faço, por falta de opção diurna, a primeira viagem 100% noturna, 650 e tantos quilômetros até Alto Paraíso de Goiás, coração goiano da inenarrável Chapada dos Veadeiros.

Mais nomes, mais índios, mais negros, mais nordestinos, mais médicos, menos preconceito, fobia e discriminação. Arraias. Campos Belos. Teresina de Goiás (disse o rapaz de Teresina, Piauí, Memphis, Tennessee). Cavalcante (e o bate-e-volta louco Alto Paraíso-Cavalcante-Alto Paraíso). Quilombo Kalunga.

Há quilombos onde a floresta ficou para trás e o cerrado é 100% (ou 99%) cerrado. Eu vi mamãe Naná na cachoeira de Taquaruçu, e ela jogava búzios e cartas e fazia amarração do amor.

IMG_9804Mais índios: Aruã, o guia (e DJ de forest trance) louro que me leva de bicicleta (como é difícil dirigir a minha vida e uma bicicleta!) às cachoeiras das Loquinhas, em Alto Paraíso, não acredita na nossa democracia. De acordo com sua convicção, a ditadura nunca deixou de vigorar: ditadura e democracia entraram num acordo de bastidores, se misturaram uma na outra, estão ainda aí juntas e misturadas – tal qual, imagino, olho esquerdo e olho direito dividindo a mesma íris.

Por descrença na democracia, Aruã não foi votar no primeiro turno das eleições presidenciais de 2014. No segundo turno, percebendo o perigo Aécio Neves, abriu uma exceção para a democradura e compareceu à urna para votar Dilma Rousseff.

Aruã é olho esquerdo, e estou em pleno acordo com a tese dele sobre o autoritarismo ditatorial que sobrevive acocorado e atocaiado nas reentrâncias jovens e imaturas da NOSSA democracia. Imatura ou não, a democracia é nossa como nosso é o petróleo e do céu é o condor.

Ensimesmado, garro a imaginar que a ditadura vive dentro da democracia (e vice-versa) como, no Tocantins, a floresta amazônica norte-sulista vive dentro do cerrado centro-ocidental (e vice-versa) – com a diferença crua de que a ditadura é a ausência completa de vegetação, o mais-que-sertão nordestino (quero dizer, sudestino, paulista, o sertão de Geraldo Alckmim e da Sabesp).

Na ausência quase completa de vegetação, é preciso ser cacto para encontrar chances de subsistência, e existe gente que vive na seca quase total das redações de jornal, revista e TV. O PIG é o sertão desassistido que corrói a inteligência humana.

Já não sei mais em que BR estou, na madrugada do penúltimo para o último dia de 2014. Os 248 quilômetros entre Alto Paraíso e Brasília conduzem a 31 de dezembro, a 2015, à posse do quarto governo esquerdo-popular cerrado-amazônico brasileiro consecutivo, direito e sobretudo esquerdo.

A viagem continua.

 


De dentes bem arreganhados

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“Vai passar nessa avenida um samba popular/ cada paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepiar”, cantava sozinho no asfalto da avenida Paulista um senhor idoso, grisalho, corpulento. No tempo em que nossos caminhos se cruzaram, a cantoria não chegou ao verso que diz que “o estandarte do sanatório geral vai passar”. Mas era disso que se tratava o teatro de 15 de março de 2015, no qual a minoria branca paulista finalmente mostrou seus dentes arreganhados empapados de baba coagulada.

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Senão, VEJAmos. Eleitor e reeleitor da presidenta Dilma Rousseff, o adorado sambista-emepebista Chico Buarque lançou “Vai Passar” em 1984, usando o mote em samba-enredo como metáfora para a campanha pela redemocratização pós-ditadura civil-militar do Brasil com S. Quem ia passar, nas primaveras de 1984, éramos nós, brasileiros com S, livres finalmente dos coturnos, das torturas de porão e da matilha de manietadores estrangeiros de generais braZileiros com Z.
foto #JornalistasLivres

foto #JornalistasLivres

Transcorridos 31 anos da canção de porvir de Chico, o senhor rotundo a canta circundado por atmosfera opressora, direitiça, grávida de ódio e dentes brancos arreganhados. Os cartazes ao redor dele não pedem, antes exigem uma “intervenção militar constitucional” – o estandarte do sanatório geral, no registro oposto ao pretendido pelo sambista esquerdista de olhos azuis.

g_protestos-fora-dilma_1501942Parece o indizível Batman do Leblon, maa é a mais glauberiana hiper-realidade: em proporção assustadora, uma multidão de pele nívea e olhos azulados como os do cantor está nas ruas hoje para pedir “democraticamente” a volta da ditadura civil-militar de 1964-1985.

Há quem seja mais sutil e menos truculento que os cultuadores do neo-militarismo. Esses não exigem impeachment constitucional na forma de intervenção democrática, não, muito longe disso. “Apenas” xingam um ex-presidente de seu país de “cachaceiro” e “anticristo” e a atual presidenta do seu país de “vaca”, “puta” e “VTNC”.

Sutis como rinocerontes numa passeata de elefantes, os representantes menos agressivos da minoria branca não pedem o fuzilamento de Dilma e Luiz Inácio Lula da Silva, “apenas” berram “pula!, pula!, pula!” para perigosos subversivos que ousam tremular bandeiras vermelhas do alto das sacadas (mais ou menos) ricas da avenida mais rica do país.

“A senhora quer mesmo que aquela pessoa pule?”, pergunto a uma senhorinha também idosa, grisalha, mirrada. “Quero!” “A senhora quer que ele morra?” “Quero!” “A senhora acha que todos os eleitores petistas precisam morrer?” “Acho!” “Metade do país tem que morrer?” “Tem!” “Mesmo os petistas da sua família?, a senhora mandaria eles pularem da janela?” “Pular não, descer.” Hein? Como assim?

Outros, movidos a justiçamento à moda ditabranda, cantam e dançam ao som do “vem pra rua” feito pelo grupo carioca O Rappa para comercial de cerveja – não, de futebol – não, de cigarro – não, de armamentos – não, de automóvel… O ar mortiço transmite um clima de final de Copa do Mundo, de carnaval na quaresma, de missa satânica, de micareta chuvosa.

O texto elaborado pelo amigo Victor Amatucci para nosso coletivo #JornalistasLivres me faz pensar não nas crianças, mas nos adultos presentes na manifestação da minoria branca. Sinto um forte cheiro de infantilização no ar, já ficando cansado depois de ler 51 vezes variações repletas de erros de português para um mesmo cartaz, um mesmo grupo de palavras de ordem, um mesmo punhado de slogans.

Comecei minha própria cobertura do evento do qual discordo frontalmente como repórter NINJA, tentando dar prosseguimento à aventura testada na sexta-feira 13. Não durei muito tempo – a indigesta mistura de raiva, ódio, rancor, ira, berros, desejos autoritários, ditadura, “cachaceiro”, “vaca”, “merda”, “bosta”, “cu”… suga minhas energias, me deixa mudo, me faz querer estar bem longe de onde infelizmente estou agora.

Deixando o cidadão que sou falar mais alto que o jornalista que também sou, aviso os amigos de Mídia NINJA que vou parar e volto para casa a pé, disposto a fugir da barbárie em que tentei me meter por sei lá qual grau de profissionalismo. Tudo tem limite, o meu já foi ultrapassado nesta tarde.

Já em casa, tenho tempo de ouvir pela janela mais um panelaço, que depois compreendo acontecer com o objetivo de calar a boca de dois ministros de Estado em entrevista ao vivo na televisão.

É o que estou querendo dizer sobre os ditos adultos da manifestação, dos panelaços, da minoria branca paneleira. Insatisfeitos, eles xingam a presidenta e seus assessores de vaca e ladrões. Quando a presidenta e seus assessores tentam falar, tapam os ouvidos, gritam, xingam, batem teflon e mandam seus representantes no poder calar a boca. Noutras palavras, fazem exatamente como fazíamos quando tínhamos oito anos de idade e não queríamos ouvir os xingos da turminha rival da outra rua. São capetas em forma de guris, infelizmente escondidos em carcaças de adultos, por vezes de sisudos senhores grisalhos.

O comportamento infantilizado e infantilizante da barbárie é 220% movido e promovido pela mídia de elite branca braZileira, Rede #GloboGolpista à frente. Passivo-agressivo como um bebê de 95 anos, o PIG (Partido da Imprensa Golpista) berra alto pela boca de suas crianças de 20, 30, 50, 80 anos de idade.

A gritaria senil é ensurdecedora o suficiente para que ninguém escute ninguém durante a manifestação ~pacífica~ (P-A-C-Í-F-I-C-A, clama em altos brados, mais uma vez fraudulenta, a rede norte-BraZil-americana que já fraudou incontáveis eleições e não-eleições do BraSil com S).

Andam de mãos dadas na avenida, nesse domingo infeliz, a desinformação gestada e praticada pela mídia branca e a ignorância imitada e repetida pela minoria branca. A contemporização brasileira, de todo e cada um de nós, não nos permitiu até o momento travar a batalha contra a derradeira ditadura (a midiática), essa mesma que atiça os cães de classe média de dentes arreganhados contra toda a sociedade braSileira.

#GloboGolpista

#GloboGolpista

Ali KamelAgora, vamos aos poréns antes de concluir. Mesmo que nos sintamos desconcertados diante da marcha pela barbárie, razões para comemorar não falta aos corações progressistas. Tento desenrolar o novelo desse argumento talvez amalucado, começando pelo fato de este texto desde o início tratar como “minoria branca” os manifestantes de domingo.

Tenho quilômetros de experiência em marchas, passeatas, paradas, manifestações, shows musicais, blocos carnavalescos. Na própria Paulista já frequentei atos de todo tipo, a começar pela chamada Parada Gay, que me representa e atende à minha identidade sexual. A cada novo ano de Parada da Diversidade Sexual, uma mesma pergunta povoa minha mente do início ao fim da caminhada: mamma mia!, de onde saiu tanto gay e onde é que eles se escondem durante o resto todo do ano?

A resposta é simples, óbvia, ululante, nelson-rodrigueana. Milhão ou milhares, os homossexuais durante o reto do ano todo simplesmente nos escondemos, nos camuflamos na paisagem (nem todos, mas provavelmente a maioria de nós). Gays, lésbicas, trans etc. não brotam na Paulista no dia do ato. Já estavam lá, mais ou menos misturados à paisagem, e todo ano encontram um dia de coragem coletiva para ousar dizer seu nome em voz alta. Não é diferente com os 210 mil reacionários antidemocráticos que povoaram (acrescido por um número indefinido de, digamos, ~curiosos~) a Paulista no domingo que passou.

Os reacionários que hoje ~ensinam~ a seus filhos como “fuzilar” aquela “puta” num paredão de “comunistas” não nasceram em 15 de março de 2015. Eles sempre estiveram aí, escondidos, camuflados, camaleônicos na folhagem verde. A novidade não é sua presença nas ruas, mas o fato de estarem se sentindo finalmente forçados a sair do armário rumo às ruas.

O que acontece é que, tal como gays e afins, os antidemocráticos liberticidas que secretamente desejam atirar os negros de volta às senzalas são uma minoria (uma minoria branca, pálida como cal, neste caso presente) – tanto são minoria que, fracassados no intento de vencer as eleições de 2014, estão politizando as ruas apenas cinco meses depois do final da apuração.

Esta é a outra boa nova: somados aos ativistas de sempre os neo-militantes de armário, a politização de braSileiras e braZileiros avança a passos rápidos num país que, até outro dia, se trancafiava em celas de ditadura e de plim-plim. Se anteontem era proibido falar de política na família, na igreja, no trabalho, hoje se fala de política sem parar, antes, durante e depois das eleições. É um processo de educação, por mais feioso que pareça a quem já está nessa estrada há muito tempo.

Mesmo entendendo tudo no avesso do avesso de uma mixórdia que é o próprio sanatório geral cantado pelo sambista, o BraSil com S que hoje engatinha na avenida está aprendendo a pensar politicamente 365 dias por ano, não só nos períodos eleitorais, não só nos dias de cuspir um voto na urna.

O senhor roliço que cantarola “Vai Passar” pode pensar que seu canto expulsa a corrupção seletiva, a democracia e a liberdade dos pulmões braSileiros. Não expulsa. São os próprios fantasmas interiores que ele – e todos nós – está – estamos – expelindo junto com o catarro gosmento.

É melhor escarrar política sanguinolenta, infectada de pus esverdeado, que imitar o silêncio submisso e politicamente deseducado de Roberto Carlos, o eterno garoto-propaganda cego-surdo-mudo da #GloboGolpista, de todas as globos.

Aprender a falar é mesmo difícil, começa pelo gu-gu-dá-dá. Mas, menino!, se segura na cadeira, porque vêm cobras e lagartos por aí, quando a menina BraSil começar a balbuciar o beabá do baião.

Michel Teló foi assassinado…

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Este texto é uma resposta às leituras e comentários ao texto “Morreu Michel Teló?“. Se você não leu aquele texto, por favor leia. Se houve espanto há duas semanas, hoje causa mais espanto ainda o fato de que Teló morreu não de causas naturais. Mas assassinado pelos próprios fãs sertanejos.

É claro que todo bom leitor entenderá a alegoria aqui construída. E quero crer que os sertanejos universitários também entenderão. Michel Teló foi assassinado pelos fãs sertanejos nos comentários ao referido texto. Olhem lá! Vários haters de primeira hora falaram que Teló “não tem voz”! Que Teló é cantor “de um hit só”! Que Teló só é quem é “por causa da Globo e do Fantástico“! Outros disseram que “Cristiano Araújo era muito melhor cantor do que Teló”. Esses e outros descabidos comentários demonstram que os fãs sertanejos, em seus momentos mais emocionados, parecem não ponderar. Isso não seria preocupante se os comentários se restringissem aos eufóricos haters da internet.

Espantoso é que blogueiros quase sempre ponderados e inteligentes tenham caído no discurso desregrado que domina a internet. De forma que este texto também quer polemizar com dois importantes jornalistas da música sertaneja.

Sabemos que, na era da internet, os blogs cumprem um papel de extrema importância, especialmente para determinados gêneros musicais que se fortaleceram com a digitalização da música. Assim, este texto visa dialogar não apenas com haters, mas com pessoas quase sempre coerentes, como André Piunti e Marcus Vinicius Bernardes.

Piunti é dono do magnífico blog Universo Sertanejo e autor de pelo menos cinco textos sobre a morte de Cristiano Araújo, algumas vezes criticando indiretamente a forma como, segundo ele, a imprensa “culta” viu a morte de Araújo. Ele não comentou diretamente meu texto, mas seus textos pertinentes e genéricos merecem problematizações. Bernardes é autor do Blognejo, outra referência fundamental na internet, e autor do longo texto “Nem Cristiano Ronaldo e nem Michel Teló“, no qual critica diretamente meu texto.

Ambos, Bernardes e Piunti, acabaram diminuindo a simbólica conquista que “Ai se Eu Te Pego” (2011) representou na música brasileira da era da globalização, colocando Cristiano Araújo num pedestal desproporcional a sua curta trajetória.

A morte de Cristiano Araújo, uma semana depois, ainda causava polêmicas. De um lado estavam aqueles como Zeca Camargo, Alex Antunes e Marcelo Rubens Paiva, que se regozijavam em diminuir a música sertaneja. Parecem ter um apreço em se distinguir do povão para com isso dizerem-se superiores. Trata-se de um erro do qual meu texto “Morreu Michel Teló?” se distingue no terceiro parágrafo. Basta ler. Nesse ponto estamos eu, Piunti e Bernardes de acordo. Essas figuras à la Zeca Camargo não merecem consideração. Chamaremos essa parte da sociedade brasileira de “sociedade Zeca Camargo”. Zeca foi pego aqui como exemplar não por ter sido o pioneiro, mas pela repercussão de seu caso. O pecado da “sociedade Zeca Camargo” não é ignorar o Cristiano Araújo, mas ter orgulho besta desse ato.

No entanto, eu me distingo de Piunti e Bernardes no seguinte aspecto: parte da estranheza que a “sociedade Zeca Camargo” sentiu com a morte de Cristiano deve-se, sim, ao elitismo cultural, mas isso não explica tudo. O largo desconhecimento do cantor sertanejo universitário deve-se também ao fato de que ele não conseguiu ir além de marcos construídos na cena sertaneja antes dele, o que dificultou os não-fãs de música sertaneja a identificá-lo, nomeá-lo e, em alguns casos, sequer ouvi-lo. Se fosse Teló, por exemplo, não haveria essa dificuldade, afinal foi impossível fugir de “Ai se Eu Te Pego”. De forma que a questão é mais complexa do que simplesmente acusar um setor da sociedade, por mais que haja razão para isso.

Do outro lado do debate sobre a morte de Cristiano Araújo e contra a “sociedade Zeca Camargo” estão aqueles, como Piunti e Bernardes, que querem provar tintin por tintin que Cristiano era um artista nacional e que tinha um enorme sucesso. E quem não percebe isso seria “das elites” ou “do Leblon”, pessoas que não enxergam além do próprio umbigo.

Aqui cabe um caso paradigmático que demonstra o quanto esse argumento é equivocado. Fafá de Belém, em recente entrevista, disse que tampouco conhecia Cristiano Araújo. Trata-se de algo espantoso! Não se pode dizer que Fafá seja “do Leblon”. Ela é alguém que esteve historicamente atenta ao sertanejo. Fafá foi uma das primeiras artistas da MPB a gravar o gênero. Em 1989 gravou “Nuvem de Lágrimas” e chamou a dupla Chitãozinho & Xororó para cantar com ela. Foi através dela que os paranaenses puderam atingir públicos que não os ouviam ainda.

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Em 1991 Fafá apostou em uma nova dupla: Zezé di Camargo & Luciano. Ela gravou o chamamé “Águas Passadas” no primeiro disco da dupla. De forma que não se pode dizer que Fafá seja alguém sem apreço pelo sertanejo e pela diversidade regional. Ainda assim, nem ela conhecia o ultrapopular Cristiano Araújo. Como sair desse paradoxo? Vê-se que o argumento de que “as elites” não conheciam Cristiano Araújo tem que ser revisto.

Meu texto foi acusado, mais diretamente por Marcus Vinicius Bernardes, de ser escrito por alguém sem contato com a música sertaneja. Embora isso seja um equívoco, não cabe a mim aqui provar fidelidade ao que quer que seja. Isso é irrelevante. O que importa é que os argumentos do texto não foram rebatidos, apenas simplificados. É uma pena. Haveria espaço para irmos além da comoção, que apesar de justa, não pode limitar a reflexão.

Então tentarei aqui explicar melhor os argumentos do texto que tanta polêmica causaram.

A tese do artigo de “Morreu Michel Teló?”, que não foi refutada por nenhum dos autores (e apenas dois isolados comentários abordaram, entre centenas), é de que a música sertaneja atual vive um processo de institucionalização. E de que a morte do sufixo “universitário” denota exatamente isso. Ninguém rebateu essa ideia.

Uma semana depois de morte de Araújo, vi um vidente no programa TV Fama, da Rede TV!, dizer que uma mulher do novo sertanejo sofreria um acidente em breve. Novamente o termo “universitário” foi suprimido. Até pelo mais midiático dos videntes comerciais de redes de TV! Como se vê, a tese de “Morreu Michel Teló?” continua de pé. O termo “universitário” desaparece, e isso denota um complexo processo ignorado por todos, inclusive pelos blogueiros. Talvez não mereça consideração, já que eles devem ter certeza de que o sertanejo não é mais “universitário” faz tempo. Mas isso reforça exatamente a tese da institucionalização.

O texto em nenhum momento disse que estava em jogo o meu gosto pessoal. Não há sequer uma linha para dizer que fulano é “melhor” que sicrano. Podem reler. O que eu apontava é que havia um problema na dimensão dada à morte de Cristiano. Ela foi tratado de forma apoteótica, como Leandro fora tratado em 1998. Mas Leandro era maior (e não “melhor”) que Cristiano. Por quê? Porque Leandro & Leonardo conseguiram algo que Cristiano ainda não havia conseguido: transformar a música sertaneja e a música brasileira.

Leandro & Leonardo colocaram a música sertaneja em nível nacional, desestabilizando antigas tradições. Há um antes e um depois de Leandro & Leonardo, que estouraram nacionalmente o hit “Entre Tapas e Beijos” em 1989. Apesar do enorme sucesso de Cristiano Araújo (porque tudo que se refere à cena sertaneja é gigantesco), não se pode dizer que o cantor universitário tenha colocado a música sertaneja num degrau maior do que já estava.

Como se vê, o meu texto “Morreu Michel Teló?” não procurava “diminuir” Araújo ou a música sertaneja, mas colocar os pingos nos is para além da comoção que descontrola a muitos.

Daí a necessidade de comparar, provocativamente, Michel Teló e Cristiano Araújo. O paranaense Teló colocou a música sertaneja num patamar que ela não estava antes de “Ai se Eu Te Pego”. Ele superou em muito todas as investidas da geração anterior de tentar se internacionalizar. A música sertaneja conseguiu com “Ai se Eu Te Pego” um sucesso multinacional, tornando-se, ao lado de “Gangnam Style”, de Psy, um dos primeiros hit da era da globalização que não foram cantados em inglês. Isso é um fato histórico que não pode ser diminuído nem relativizado.

O sucesso de Teló acabou até puxando outras canções consigo, como “Balada” (2011), de Gusttavo Lima, entre outras. Não se trata de pensar, como disse Bernardes, que eu ache que a música sertaneja “parou em Michel Teló”. Não é isso. Trata-se apenas de mostrar que, até hoje, “Ai se Eu Te Pego” é um marco não superado na história da música brasileira. Aliás, um marco raro. Antes dela apenas “Garota de Ipanema” (1964) tinha atingido o mesmo patamar. É por isso que não se pode dizer que Cristiano Araújo tivesse a mesma importância na cena sertaneja que teve e tem Teló. Isso não é diminuí-lo. É apenas dimensionar uma carreira que, embora tenha atingido as multidões, teve concorrentes maiores.

Valem ainda duas comparações para melhor explicar a tese de “Morreu Michel Teló?”. Comparemos a carreira de dois artistas do passado, mais ou menos quatro anos depois de iniciarem o sucesso nacional: Roberto Carlos e Eduardo Araujo. Em 1969 eles, assim como hoje Teló e Cristiano, eram artistas conhecidos nacionalmente, ídolos da jovem guarda, com hits que estavam na boca das multidões. Faziam parte de um gênero que tomou todo o Brasil rapidamente e eram muito criticados pelas “elites culturais”.

EduardoAraujo-oBomLembram-se de Eduardo Araujo? Trata-se do cantor de “O Bom” (1967): “Meu carro é vermelho/não uso espelho pra me pentear…”, um hit que tocou do Oiapoque ao Chuí nos anos da jovem guarda. Não foi o único hit do cantor, que assim como Cristiano Araújo também teve alguns mais. A carreira de Eduardo Araujo, assim como de grande parte dos artistas da jovem guarda, foi embalada pelo sucesso de hits tocados nas casas de milhões de pessoas, em todo o país.

Mas uma coisa é certa: Eduardo Araujo não era Roberto Carlos. O cantor de Cachoeiro do Itapemirim é um monstro da história da música brasileira. Roberto é simplesmente “o cara” que deu uma nova dimensão à música popular. Por mais sucesso que Eduardo Araujo tenha tido na sua época, não pode ser comparado ao papel histórico de Roberto Carlos. É mais ou menos por aí, com os problemas de toda comparação, que meu texto colocou lado a lado Teló e Cristiano Araújo. Assim como Roberto e Eduardo Araujo em 1969, Teló e Cristiano têm em 2015 por volta de quatro anos de sucesso nacional. Mas Teló e Roberto conseguiram algo que os Araújos nunca conseguiram: colocar seu gênero em novo patamar. Houve antes e depois de Roberto na música brasileira. Há um antes e depois de Teló. Isso não é “gosto”. É só uma constatação.

imagesAinda é possível mais uma breve comparação de Cristiano Araújo com Zezé di Camargo & Luciano. Em 21 de maio de 2012 Zezé foi ao programa Roda Viva, da TV Cultura. Lá foi perguntado sobre sua ida à casa do presidente Fernando Collor em 1992, levado por Gugu Liberato e o programa Sabadão Sertanejo. Essa visita gerou nos sertanejos a injusta alcunha de serem “trilha sonora da era Collor”. Seja como for, isso não está em jogo agora. Pois bem. Zezé respondeu:

“Na época do Collor, aquilo que aconteceu com a música sertaneja… eu participei… mas nós não éramos ainda dupla de primeiro escalão… na época eram Chitãozinho & Xororó e Leandro & Leonardo os dois grandes nomes… mas nós fomos!”.

Nessa época da visita a Collor, Zezé & Luciano já tinham diversos hits na boca de milhões de brasileiros, como por exemplo: “Quem Sou Eu sem Ela” (1991), “Eu Te Amo” (1991), “Coração Está em Pedaços” (1992), “Muda de Vida” (1992), só para ficar nas mais conhecidas. Isso sem falar no megasucesso do qual, gostando ou não, ninguém em território nacional conseguiu escapar: “É o Amor”, de 1991. Cristiano Araújo, apesar do enorme sucesso, ainda não tinha tido um “É o Amor”. Se Zezé pôde, anos mais tarde, se considerar um artista que “não era do primeiro escalão” em 1992, por que seria um grande pecado considerar Cristiano Araújo um artista que ainda não havia chegado neste patamar (embora caminhasse a passos largos para isso)? Isso não é diminuir Araújo nem é uma questão “de gosto”. É apenas um fato. Até porque denota que ainda havia espaço para o artista crescer.

E não sou apenas eu que digo isso. De forma enviesada, até mesmo o blogueiro Andre Piunti disse. No dia 25 de junho, ele publicou um texto intitulado “Cristiano Araújo (3) – o resultado, em números, das homenagens das rádios“. Relatando dados da empresa Connectmix, ele mostrou como Araújo dominou as rádios por todo o país naquele dia. Isso é normal quando um grande artista morre, e Piunti relatou isso de forma equilibrada, como faz sempre.

O curioso é que em 29 de junho o mesmo blogueiro tenha fornecido dados que relativizavam a força de Araújo. No texto “As músicas sertanejas mais tocadas da última semana (21/06 a 27/06) Piunti fez uma lista dos dez artistas mais tocados. Trata-se de algo costumeiro em seu completo blog, algo sem preço para um historiador do futuro. Daqui a alguns anos constataremos o valor de saber, semana a semana, os sertanejos mais tocados, graçasàa obsessão virtuosa do blogueiro. É algo realmente inestimável. Pois bem. Entre os dez artistas mais tocados da semana de morte de Araújo tivemos Luan Santana, Victor & Leo, Marcos & Belutti, Michel Teló, Leonardo e Eduardo Costa, Fernando & Sorocaba e João Bosco & Vinicius, entre outros. Cristiano Araújo não estava entre os dez artistas mais tocados. Claro, ele já ocupou a lista em outros momentos. Seja como for, é espantoso que Cristiano tenha sido ultrapassado por vários artistas do próprio meio sertanejo na semana de morte, quando foi insistentemente tocado Brasil afora.

Não era a primeira vez que Piunti dava a Cristiano Araújo a dimensão correta dentro da cena sertaneja. Quando foi roteirista do programa Bem Sertanejo, Piunti limitou a relevância de Cristiano. Como mostrou o jornalista Mauricio Stycer, ao longo de 2014 foram exibidos no Fantástico 12 episódios com 13 minutos cada. Araújo foi contemplado com exatos 15 segundos do último episódio, depois que o apresentador Tadeu Schmidt, em off, informou: “A nossa viagem musical termina aqui. Mas o sertanejo segue adiante com outros nomes da nova geração, como Cristiano Araújo”. Luan Santana, Victor & Leo, Paula Fernandes e vários outros mereceram mais tempo que Cristiano, com razão. Segundo Stycer, em entrevista com Piunti, Cristiano Araújo não conseguiu mais espaço “por questão de tempo”. Seja como for, que fique claro que não foi nenhum pecado o que Piunti fez. Ele assim o fez pois Araújo não tinha a dimensão dos outros na época do programa de Michel Teló.

Talvez devido ao pouco espaço dado a Cristiano Araújo em Bem Sertanejo, alguns fãs de Cristiano Araújo tenham preferido agredir Teló. Nos comentários ao meu texto, alguns haters chegaram a dizer que Teló era um “cantor de um sucesso só”. Nada mais equivocado. Só para ficarmos nos principais, Michel Teló tem hits consideráveis desde 2010: “Ei, Psiu! Beijo Me Liga” e “Fugidinha” (2010), “Ai se Eu Te Pego” e “Humilde Residência” (2011). Obviamente os experientes blogueiros não caíram nessa ingênua armadilha, apenas os haters. Mas, mesmo que essa acusação fosse verdade, cabe uma questão.

Teló não precisa mais de hit. Ele pode parar de ser cantor e virar “apenas” apresentador de Bem Sertanejo, como muitos disseram insanamente nos comentários. Ainda assim, seu nome estaria marcado na história da música brasileira por ter colocado uma canção extremamente popular no top hits mundiais do seu tempo.  Teló já é um medalhão da música brasileira, e pode, hoje, até dispensar sucessos, caso queira.

No entanto, os fãs sertanejos gostam muito de valorizar os sucessos. Claro, é compreensível. Para um gênero popular é importante ter uma ou várias canções na boca de milhões. Mas é preciso diferenciar sucesso e prestígio. Sucesso pode vir e passar. Traz fortuna, mulheres, carros, mas não dura para sempre. Prestígio se conquista com sucesso, mas também com atitudes que não dão lucro imediato, mas que constroem a respeitabilidade no meio. Ser apresentador do Bem Sertanejo, comandado pelo ótimo roteirista Piunti, coloca Teló num papel de mediador moderno do gênero. É algo fundamental para a construção do seu prestígio, para além do sucesso momentâneo.

E aí temos um problema frequentemente subestimado tanto pelos blogueiros sertanejos quanto pelos haters. Refiro-me aqui sobretudo a crítica de Marcus Vinicius Bernardes, que demonstra um rancor bastante agressivo contra aqueles que supostamente não seriam “entendidos” na música sertaneja. Bernardes rejeita os críticos que “não sabem o que se passa além dos muros da cidade maravilhosa ou dos arranha-céus paulistanos”, sujeitos “elitistas” que não admitiriam outros valores culturais. Em parte, Bernardes tem razão. Como dissemos, a “sociedade Zeca Camargo” afeita a MPB/samba/bossa nova/rock existe. Com frequência essa “sociedade Zeca Camargo” dificulta o conhecimento do Brasil real e diminui tudo aquilo que não passa por sua lente. Mas meu artigo “Morreu Michel Teló?” não se confunde com essa postura.

O que me espanta é que Bernardes não tenha se preocupado em ver de fato quem era o autor do artigo “Morreu Michel Teló?”. Se visse minha biografia, escrita ao final do artigo, saberia que tenho um livro que critica exatamente esse elitismo cultural da “sociedade Zeca Camargo”. Meu primeiro livro, Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga, publicado em 2011 pela editora Record, lidou exatamente com essas questões que ambos, eu e Bernardes, condenamos nas elites culturais.

Mas Bernardes não sabe quem sou. E o caminho mais fácil de desmerecer minha crítica séria foi atribuir meu pensamento à revista CartaCapital. Tampouco sabe ele que não tenho nenhum vínculo direto com a revista ou o site, e sequer ganhei qualquer dinheiro para escrever. Aliás, nem jornalista sou. Sou um reles historiador. Se Bernardes tivesse lido meu outro artigo no FAROFAFÁ veria que penso de forma muito semelhante a ele. Meu artigo “Existe sertanejofobia em SP” mostra como a Virada Cultural, evento que desde 2005 mobiliza a prefeitura da capital paulista e os moradores da maior cidade do Brasil, vem sistematicamente ignorando a música sertaneja, num misto de preconceito e desconhecimento.

Talvez por desconhecimento de quem critica, Bernardes agride aqueles que, na sua ótica, não são “legítimos” sertanejos, como eu. Parece haver um medo de discutir para além das fronteiras do gênero. Mas creio que um dos contratempos de querer ganhar a alcunha de gênero musical nacional é discutir com aqueles que não têm o sertão como berço. Acusar cariocas ou paulistanos de “elite” ou “pseudo-intelectuais”, como disse Bernardes, não vai ajudar a de fato construir a hegemonia tão desejada pelo blogueiro.

Afinal, por que tais blogueiros  e haters têm tanto ódio contra os “não sertanejos”? Em parte, sabemos, é compreensível. Afinal muitos “não sertanejos”, como disse Bernardes, não querem sair de “seus Leblons e suas praias de Copacabana para desbravar o Brasil e entender esse fenômeno cultural” que é a música sertaneja. De fato: assim é a “sociedade Zeca Camargo”. Mas o mundo é complexo e nem todos são iguais a Zeca. Há pessoas que de fato querem dialogar. É preciso abrir o olho e saber diferenciar. Aliás, seria desejável que a crítica sertaneja demonstrasse estar além do ódio que tanto sofrem. Afinal, a música sertaneja sempre buscou negociar com os “não sertanejos”, e não apenas se opor a eles.

Se é verdade que em muitos momentos a crítica cultural “não sertaneja” rejeitou os sertanejos, é preciso aceitar que uma parte dela está atenta a seus gigantescos passos. Especialmente este FAROFAFÁ. Em 9 de janeiro de 2012, em meio ao sucesso de “Ai se Eu Te Pego”, quando muitos criticavam o gênero, Pedro Alexandre Sanches escreveu o elogioso texto “Michel Teló exporta a sanfona de Luiz Gonzaga para o mundo“, no qual compara o paranaense ao mais famoso artista pop brasileiro do interior. Ou seja, não é de agora que alguns poucos “não sertanejos” buscam dialogar de forma respeitosa. E dialogar é sempre preciso.

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A música sertaneja só atingiu o patamar que atingiu porque teve mediadores com quem dialogar. Há muitíssimos exemplos dessa associação com “não sertanejos” na longa jornada da música sertaneja. Por exemplo: em 1981 foi lançado o filme Estrada da vida. Era uma cinebiografia da dupla Milionário & José Rico filmada por ninguém mais, ninguém menos que Nelson Pereira dos Santos, o pai do cinema novo, que até então não tinha nenhuma intimidade com a música do interior.

Em 1986, Roberto Carlos chamou Chitãozinho & Xororó e Chrystian & Ralf ao seu programa de fim de ano. Também nesse ano Jair Rodrigues gravou “Majestade, o Sabiá”, de Roberta Miranda, dando aval à iniciante. Fafá de Belém, como vimos, também ajudou a nacionalizar a música sertaneja na virada dos anos 1980 para os 1990.

No programa Amigos, da Globo, entre 1995 e 1999, estiveram presentes Fafá de Belém, Fábio Jr., Simone, Elba Ramalho e Daniela Mercury. Em 1999, Maria Bethânia gravou “É o Amor”.

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Em 2005, Caetano Veloso produziu junto com Zezé di Camargo a trilha sonora do filme 2 Filhos de Francisco, que contou com participações de Nando Reis, Ney Matogrosso e Bethânia.

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Em 2006, Chico Buarque também se aproximou da música sertaneja e gravou a canção “Minha História” no CD de Zezé Di Camargo & Luciano. Em 2007, Zé Ramalho e Lulu Santos participaram do disco de Chitãozinho & Xororó.

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O sanfoneiro Dominguinhos participou da gravação da canção “Kid Lampião” no disco Retrato – Ao vivo no Estúdio, de César Menotti & Fabiano, de 2010. O herdeiro musical de Luiz Gonzaga também regravou com Paula Fernandes a canção “Caminhoneiro”, no disco Emoções Sertanejas, do mesmo ano. Pepeu Gomes, ex-Novos Baianos, participou da regravação de sua composição “Sexy Yemanjá” no DVD de Victor & Leo Ao vivo em Floripade 2012. O ex‑titã Nando Reis e o baterista do Skank, Haroldo Ferretti, também participaram desse disco. Zé Ramalho gravou no disco de 2012 de Paula Fernandes.

Como se vê, as mediações e diálogos foram essenciais na história da música sertaneja, como já demonstrou Danilo Cymrot em ótimo texto também publicado em FAROFAFÁ. Essa mediação foi algo que Paula Fernandes fez quando cantou com Roberto Carlos em 2010, por exemplo, o que talvez explique que ela seja reconhecida mais facilmente que Cristiano Araújo pelo público “não sertanejo”. O contato com a famigerada MPB e com o público “de elite” e “da praia de Copacabana”, “não sertanejo”, não pode ser visto como algo a apenas ser condenado. Esses contatos auxiliaram a nacionalização da música sertaneja e seu crescente sucesso, processo que não pode ser subestimado.

Por fim, gostaria de convocar todos a um debate aberto e franco sobre a música sertaneja. Faz tempo ela se tornou tão importante que não pode mais ser analisada na base do “gosto” ou “não gosto”. Sua discussão não pode ficar restrita a “entendedores” ou “especialistas”. Tampouco pode ser analisada apenas com base na ideia de que “as elites” são “preconceituosas”. Afinal, uma parte da elite se tornou faz tempo (desde os anos 1990) consumidora de música sertaneja.

Ou seja, a questão é mais complexa. Se aqui debato com Piunti e Bernardes é porque os reconheço como louváveis jornalistas e sérios analistas do gênero que tanto amamos. Façamos com que a crítica jornalística, cada vez mais liberta dos conglomerados empresariais da imprensa tradicional, esteja à altura desse gênero tão importante para a cultura brasileira.

 

Quem tem medo do Brasil?

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“Quem Tem Medo de Música Caipira?”, pergunta o título de uma canção de 1972 do músico fluminense Ruy Maurity. Integrante do LP Em Busca do Ouro, creditado a Ruy Maurity & Trio, a moda de viola pós-moderna participava da movimentação que ficaria conhecida como rock rural e atacava um tabu que o Brasil não estava preparado para enfrentar – talvez não esteja ainda hoje, 43 anos mais tarde.

Ouço “Quem Tem Medo de Música Caipira?” e outras MPBs de Ruy dentro do ônibus, na estrada que liga Asunción, no Paraguay, a Foz do Iguaçu, no Paraná, durante a expedição íntima que faço às minha próprias origens de brasileiro paranaense alourado filho de mãe mestiça gaúcha e pai índio catarinense nascido no leito da Guerra do Contestado (o que diabos foi isso?, que nunca estudei na escola?).

Estou no meu fone de ouvidos, mas, um banco atrás, um casal de paraguayos ouve seu radinho a todo volume, incomodando o resto do ônibus (cultura incomoda?). Brigo com os sons deles ouvindo intimamente Almir SaterTonico & TinocoTetê EspíndolaTião CarreiroRenato TeixeiraCascatinha & InhanaSérgio Reis, Pedro Bento & Zé da EstradaPerla (a única artista legitimamente paraguaya que conheço).

De repente, me dou conta de que a riqueza do momento se encontra no radinho do casal paraguayo ao lado, muito mais que nos sons que eu já conheço de cor e salteado. Desligo “Quem Tem Medo de Música Caipira?” etc. e tento ouvir – e entender – o que os companheiros de viagem estão ouvindo.

Rola muito daquilo que eu chamaria de sertanejo universitário em castelhano – eu gosto (e sou suspeito para falar, porque gosto à beça dos sons de sanfona do meu conterrâneo Michel Teló e aparentados).

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Rola uma espécie de tecnobrega paraense também em castelhano (gosto!) – me volta à mente o termo “retrocumbia”, que li num cartaz de baile durante o trajeto Foz-Asunción, de passagem por alguma cidade do interior florestoso do Paraguay (como é florestal o interior paraguayo!), antes de o ônibus passar perto do lago azul de Ypacaray. Será que isso é retrocumbia? Eu gosto.

Rola – surpresa! – um funk brasileiro em português que fala de “perereca” e de “novinhas”.

Rola – surpresa máxima! – uma versão de “É o Amor” (1991), de Zezé di Camargo & Luciano, cantada em português, mas com forte sotaque castelhano, paraguayo, portunhol, brasiguayo, espanhol ou seja lá o que for. O casal canta junto, apaixonadamente.

Rolam lágrimas dos meus olhos mortos de medo de música caipira.

“Quem tem medo de música caipira?”, a esta altura, soa como uma pergunta antiga. Tenho vontade de sair correndo pelado pelas florestas do Alto Paraná, gritando-perguntando por que, por que (por quê???) temos (tenho) tanto medo da música caipira.

A resposta me assombra há anos, e é tão evidente nesse trajeto que passa pelos guaranis paraguayos e passará pelos kaingang e xokleng e botocudos e xapecós das terras banhadas pelo rio Uruguai (divisa SC-RS) onde nasceu seu Zé meu pai (1929-2013). Temos medo, pânico, terror da música caipira (sertaneja, sertaneja universitária, tecnobrega, axé, forrozeira, lambadeira, vanerona etc. etc. etc.) porque precisamos conservar oculto no fundo de nós o sangue indígena que corre dentro de nossos corpos.

Temos medo da música caipirossertaneja (bom dia, Luiz Gonzaga!, boa tarde, Teixeirinha!, boa noite, Inezita Barroso!) porque ela é a voz lamentosa dos índios brasileiros que se encontrou com as violas portuguesas que violaram as índias e os índios brasileiras no processo de estupro culturalmente conhecido como (………coloque seu próprio apelido no estupro………..). Ninguém gostamos de lembrar que somos todos filhos de um (de muitos) estupro(s).

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Mas o recalcado, menina, ele sempre volta, ele sempre volta e nos pega pelo pé. Tudo é música caipira e sertaneja e cabocla e indígena entre a rodoviária do Tietê e as cataratas do rio Iguaçu (uma das sete maravilhas do mundo de propriedade de nosotros índios da Tríplice Fronteira Argentina-Brasil-Paraguay embora finjamos que tais maravilhas nem nos pertencem).

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Percebo isso agudamente no Parque das Aves, anexo ao lado brasileiro do Parque Nacional das Cataratas (instituído em 1939 pelo gaúcho Getúlio Vargas, o único ditador de pendores direitistas que a elite bandeirante paulista e seus acólitos odeiam). Ali, a primeira canção que ouço ao longe é a trans-paraguaya “Índia”, numa versão em português que não é nem dos paulistas Cascatinha & Inhana nem do capixaba Paulo Sérgio nem da baiana Gal Costa nem da paraguaya Perla.

A propósito, existe alguma canção mais linda que “Índia” no planeta Terra?

Em Caçador (SC), cidadela do Contestado onde meus pais se casaram em 1954, ouço funk brasileiro bombando dos soundsystems dos automóveis.

Na rodovia que passa por Pato Branco, Mariópolis e Palmas (PR) antes de chegar nas terras evangelizadas de Santa Catarina, ouço em meu fone interno Roberto Carlos, Roberto Carlos, Roberto Carlos: “Minha Tia” (1976), “Lady Laura” (1978), “Meu Querido, Meu Velho, Meu Amigo” (1979), “A Guerra dos Meninos” (1980), o suprassumo da música caipira sertaneja indígena capixaba do Robertão.

Já imaginou Roberto secundado por harpas paraguayas?, eu já. Existe a versão de “Índia” por Roberto, uma interpretação tão resistente como uma mula empacada – mas existe.

Roberto Carlos nasceu em Cachoeiro do Itapemirim (ES), em meio às índias capixabas naraleão. Nasceu, Roberto Índio do Brasil, em 19 de abril: dia do índio, dia do nascimento do ditador Getúlio Vargas.

 

1972 Em Busca do OuroRuy Maurity segue zumbizando em meus ouvidos. Quem tem medo da música caipira? Quem tem medo dos índios brasileiros? Quem temos medo de nós mesmos? Quem temos medo do Brasil? Por que sempre tivemos tanto medo de nós mesmos?

 

Cinema na Quinta do Sol

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“A menina parece um palmito!”, exclama o espectador adolescente no escurinho do cinema, diante da primeira aparição de uma personagem ruiva, muito pálida, no filme brasileiro O Escaravelho do Diabo, de Carlo Milani.

Não parece uma frase que ouviríamos num cinema da região central de São Paulo. De fato, estamos a mais de 20 quilômetros da Praça da Sé, na Vila Císper, bairro de origem operária (Císper vem de Companhia Industrial São Paulo e Rio) situado no distrito de Ermelino Matarazzo, na zona leste da capital paulista, à beira do Parque Ecológico do Tietê, perto da divisa com o município de Guarulhos.

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Neste dia 20 de abril de 2016, entra em funcionamento com gala a primeira sala de cinema do CEU (Centro Educacional Unificado) Quinta do Sol, unidade municipal de ensino inaugurada em abril de 2008.

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Na sessão inaugural, um público ruidoso de adolescentes e crianças tem direito a piano, pipoca, sanduíche, refrigerante, música de Luiz Gonzaga cantada e tocada ao vivo, filme de detetive inspirado na literatura infanto-juvenil de Lúcia Machado de Almeida, projeção de primeira, som excelente e discursos de autoridades.

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“Quem vem ao cinema não quer blábláblá”, tenta contemporizar Maria do Rosário Ramalho, secretária municipal de Cultura da gestão Fernando Haddad (hoje o prefeito não está presente, nem o secretário de Educação, Gabriel Chalita). “Então vai logo”, reage, sem cerimônia, uma adolescente na plateia.

O espaço segue a vocação dos CEUs e não se destina exclusivamente ao cinema. Como explica o gestor da unidade, o alagoano radicado paulistano Uoston Barros de Sá, há pouco tempo esteve fazendo show aqui a cantora e compositora paulistana Maria Gadú.

Uoston se emociona quando conta que Gadú, ao chegar e encontrar mais de mil candidatos a espectadores esperando pelas cerca de 400 vagas no teatro-cinema-etc., decidiu fazer duas sessões em vez de uma, sem modificar o valor do cachê combinado.

A inauguração da sala de exibição no Quinta do Sol se deve à ação da Spcine, escritório municipal de desenvolvimento, financiamento e implementação de programas e políticas para cinema, TV, games e web. A empresa, vinculada à Secretaria Municipal de Cultura, pretende instalar 20 salas como essa pelas periferias da cidade até o final de maio.

A sala do Quinta do Sol é a quarta a ser inaugurada, após as dos CEUs de Jaçanã, Heliópolis e Butantã. As sessões do circuito, gratuitas e abertas a quaisquer espectadores, acontecem às quartas-feiras, quintas-feiras e domingos.

O diretor-presidente da Spcine, Alfredo Manevy, busca um diálogo mais próximo e direto com a plateia. Pergunta quem aqui costuma ir ao cinema em shopping center. Muitos levantam a mão. Pergunta quem vai ao shopping mais de duas vezes por ano. Menos adolescentes levantam a mão. Pergunta quem quer ter cinema perto de casa. Praticamente todo mundo levanta a mão.

Manevy arranca aplausos da juventude quando menciona que o Quinta do Sol projetará, em breve, um filme da moda em que dois famosos super-heróis norte-americanos contracenam. E chega quase de imediato à mensagem central do discurso:

“O que quero pedir para vocês, em nome da Prefeitura e da Spcine, é que cuidem da sala, espalhem a notícia, falem para seus pais, primos e amigos que a gente tem uma sala de cinema aqui no CEU Quinta do Sol e que esse cinema é gratuito, para todas as pessoas, idades e gostos. Cuidem bastante da sala, divulguem, participem”.

Em conversa com a reportagem, Manevy traça os objetivos fundamentais do circuito SP Cine nas periferias. “São Paulo tem no mínimo 30% das pessoas de baixa renda na população, um apartheid óbvio num grande polo econômico e cultural, que se orgulha de ser cosmopolita. A ideia do projeto é criar um circuito público de salas, para primeiro incluir as pessoas na experiência de ir ao cinema. Todo mundo aqui já viu filme: na TV, no celular, na internet. Mas a experiência da sala escura, da convivência social num espaço fechado com uma tela grande, provavelmente não tiveram ou tiveram poucas vezes.”

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O segundo ponto explica, em parte, o painel de primeiros cartazes no Quinta do Sol, com desenho e aventura norte-americanos, O Escaravelho do Diabo e a condensação cinematográfica da telenovela bíblica Os Dez Mandamentos, da TV Record (em contraste com os 15% destinados pelo mercado comercial ao cinema nacional, o Circuito SP Cine destinará no mínimo 40% da programação para filmes brasileiros):

“O segundo objetivo é gerar tela para uma programação de qualidade que o circuito comercial não oferece, uma programação mais equilibrada. Temos que trazer algumas coisas que estão no imaginário, que são as mais demandadas num primeiro momento, mas colocando, por exemplo, O Escaravelho do Diabo, que é nacional, ou Sinfonia da Necrópole, da Juliana Rojas, um filme independente autoral radical. A gente tem que tem que ter uma inteligência de programação”.

Manevy provoca o senso comum de quem está habituado a olhar a cultura sempre a partir do centro: “Um terceiro objetivo é lidar com a demanda de uma elite cultural da periferia, que é poderosíssima, responsável por uma produção cultural top hoje, com hip-hop, saraus… Eles querem Andrei Tarkovsky, David Lynch, mas temos que calibrar, trabalhar muito com público infantil, ampliar repertório”.

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Na linha de oferecer melhores opções para camadas sociais geralmente relegadas a planos subalternos, o gestor público ressalta o cuidado de levar às periferias uma agenda sincronizada com as do dito centro. “Queremos trabalhar sempre com lançamentos, para não dar ideia de que o cinema deles é de catálogo, de filmes antigos, o que seria uma maneira de dizer que é B, de segunda linha. O menino de comunidade tem de poder dizer que tem aqui na comunidade o filme que o garoto de classe média tem no shopping.”

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Na sala de exibição, o público ruidoso se comporta de modo irreverente, mas nunca de ouvidos fechados para os sons ao redor. Faz-se um silêncio quase completo quando, em seu discurso, a coordenadora de difusão da Spcine, Ana Louback, sugere que quem que já leu o livro assista ao Escaravelho pensando em como o cineasta fez a transposição da forma escrita para a audiovisual, porque “talvez um dia vocês estejam aqui contando as histórias de vocês numa tela de cinema também”.

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A coprodução da Globo Filmes é fruída com intensidade. A uma cena de maior impacto, seguem-se alguns minutos de dispersão. O espectador irreverente chama a personagem branquela de “palmito”. A uma cena em que aparece uma tela de TV ligada, alguém reage prontamente ao logotipo no canto direito inferior: “É a Globo”.

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O final do filme é acompanhado por entusiasmada salva de palmas das meninas e dos meninos da Vila Císper. A primeira sessão termina ao entardecer, enquanto as peruas escolares estacionam à porta do CEU Quinta do Sol para levar os estudantes de volta para casa.

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A festa joanina

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“Ô, Juninho! Cê é surdo?” Cambaleante, o bebum grita com insistência, tentando chamar a atenção do artista que está no alto do palco armado na praça central da cidade. Podia ser qualquer rua e praça de qualquer cidade e país. Mas nestes quatro dias juninos estamos vivendo em Joanópolis, o pequeno município paulista que gosta de dizer que nasceu de uma festa de São João e também que é a capital brasileira (ou seria mundial?) do lobisomem. O aniversário de 138 anos é comemorado durante cinco dias de festa joanina, em torno da data em honra do santo padroeiro (o 24 de junho).

Autoapelidada nostalgicamente de A Joia da Mantiqueira e reconhecida com o título de estância turística, mas pouco notada de paulistanos e paulistas e menos ainda de brasileiros em geral, a cidade de 11,7 mil habitantes fica a meros 118 quilômetros da capital do estado de São Paulo, na divisa com Minas Gerais, ao sopé da Serra da Mantiqueira.

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Podia ser qualquer praça de qualquer país, mas não estamos somente na cidade de São João ou na capital do lobisomem. Entre os municípios paulistas de Piracaia e Joanópolis se localiza uma parte importante do Sistema Cantareira, o mesmo que esteve praticamente seco e vazio durante a crise hídrica estadual que teve ápice em 2014: os reservatórios dos rios Jaguari (com nascente em Camanducaia, em Minas Gerais) e Jacareí (com nascente em Joanópolis).

Apesar da multidão impressionante que corre para cá nos cinco dias de festa junina, com ápice na noite joanina da sexta-feira, Joanópolis nem tem hotel. Os turistas se distribuem entre o hostel da Tuca, as pousadas da vasta zona rural do município ou mesmo na cidade vizinha que fica depois da divisa, a sul-mineira Extrema.

IMG_5705Falamos aqui sobre festa junina e cultura caipira, num estado dominado pela capital que se tem como a mais cosmopolita e megalopolitana do país. Nesse contexto e apesar da proximidade geográfica com a esquina entre a Ipiranga e a São João, Joanópolis respira memória e esquecimento, daquela categoria de que gostam de lembrar-e-esquecer os paulistas cultivadores da Revolução Constitucionalista de 1932. Aqui, por exemplo, se consome até hoje o pão do PRP (Partido Republicano Paulista), como constata o patrício Valter Cassalho, de 49 anos, historiador dedicado da própria raiz e também fundador e presidente da ACL, a Associação de Criadores de Lobisomens.

Ele se diverte em contar casos de lobisomens ancestrais de Joanópolis – inclusive um dos fundadores da cidade, Anselmo, avô da conterrânea Maria do Rosário Tavares de Lima, autora do livro-tese Lobisomem, Assombração e Realidade (1983). “‘Nhô Ansermo’ era um homem metido a republicano, maçom, e levava a cavalo a proposta republicana, abolicionista e maçônica. Usava aquele capão, cavalo, de madrugada, bem coisa de maçom. Era um português grande, e a turma tinha cisma, ‘só pode ser lobisomem, vive de noite pra rua'”, evoca.

“Nós trabalhamos o que eu chamo de turismo do imaginário, que é levar as pessoas a viajarem em busca dos seus imaginários”, explica Valter. “Se você vai pra Escócia, vai ver o monstro do lago Ness. O Conde Drácula na Transilvânia. O ET em Varginha. Por que não ver o lobisomem em Joanópolis? Produzimos suvenir do lobisomem, introduzimos o bebê lobisomem, o lobisomem com uma cara mais infantil, mais aproximada das crianças. Partimos da premissa de um lobisomem mais simpático, agradável, que foge da linha hollywoodiana, amedrontadora, aquele lobisomem que mata e destrói.”

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O historiador explica a técnica para se tornar um criador credenciado: “O que é criar lobisomens? Sabe como a gente cria? A gente conta um causo numa roda de amigos. Daqui a pouco todo mundo começa, tem uma história pra contar, de alguém que morreu, assombração que apareceu. Essas pessoas começam a contar e recontar, criando novos lobisomens, novas assombrações”.

Ainda sobre lembrar-e-esquecer, construir-e-destruir, ser nova-iorquino ou jeca-tatu, diz-se aqui que os cinco dias joaninos reúnem mais joanopolenses (ou joanopolitanos) que o feriado natalino. “Para aquele que nasceu aqui e saiu para estudar ou trabalhar, a data de retorno, de reencontro com a família, é esta data”, define o prefeito Adauto Oliveira, do PSB (Partido Socialista Brasileiro, coligado no plano estadual ao governador tucano Geraldo Alckmin). “A tradição é grande. Eu participo da festa desde criança, como todos.”

O prefeito afirma que a prefeitura banca sozinha a festa, por um custo médio anual que gira entre R$ 80 mil e R$ 100 mil. “Depende das atrações. A festa não tem investimento do governo estadual, é feita somente com locação do espaço para as barracas e recurso público próprio da Prefeitura. Não é uma festa cara, porque as atrações não são caras. Já tivemos Almir SaterSérgio Reis, que encarecem a festa. Temos a particularidade de que não é o artista que traz a população e o turista pra cá. É a festa em si, o povo na rua. É claro que em período de crise a festa pesa na administração. Mas é uma festa de 138 anos, a gente tem que fazer, tem que continuar essa tradição.”

Como num retrato em três por quatro do estado paulista como um todo, Joanópolis e sua festividade mais grandiosa oscilam entre a tradição e a modernidade, a conservação e o progresso. “A festa muda, agrega e desagrega elementos”, define Valter, frequentador desde que nasceu. “Ficam a parte religiosa, as procissões, o pau de sebo, as bandeirinhas, os fogos. Segue a tradição de soltar rojão às 6h da manhã, ao meio-dia e às 6h da tarde, desde que começa junho, anunciando que a festa chegou.”

A modernização o historiador enumera por acréscimos e ausências, ganhos e perdas: “Como elementos novos, as barracas vão melhorando, se modificando, se padronizando. O que acho negativo é a música. Não se está seguindo a sequência de música caipira, tradicional. Neste ano não saiu o caiapó, que é um grupo folclórico da cidade, um ritual muito bonito da morte e ressurreição do índio curumim. Isso faz falta”.

Mas em que consiste a festa joanina que se orgulha em se autoclassificar como uma das maiores do maior estado (mesmo que esse estado historicamente tenha se deixado levar pela vontade de ocultar as próprias tradições, brejeirices e caipirices)? Depois de morar em Joanópolis por quatro dias, este repórter tenta traçar um retrato em texto, foto, som e vídeo.

 

A música

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O São João joanopolitano se esparrama pela ampla praça da igreja católica e pelas ruas que confluem para ela, todas ornadas por bandeirinhas e caracterização caipira e junina. A programação musical é uma das âncoras do evento, atualmente distribuída por três grandes palcos: o principal (na própria praça), e os das chamadas Rua Joia Rara (com shows de MPB, rock e jazz) e Rua Caipira.

Como indica o nome, o Palco Caipira rapidamente se revela um berço de tradição da música interiorana de raiz. Os nomes são em sua maioria locais, como os da dupla de sessentões Melo e Marinho, que canta na abertura das festividades (quarta-feira, dia 22) o orgulho joanopolense, o apego à terra, os mananciais que fazem de Joanópolis área de proteção ambiental. Segundo conta Melo (vídeo abaixo), ambos são de família de violeiros e cantadores de catira e cantam “por hobby”, “pra divertir”.

Os catireiros são seguidos pela banda de Cláudio Egídio, que explica que é parente de Melo & Marinho e que há um Egídio da nova geração se apresentando nessa mesma noite no Palco Principal. De sonoridade mais contemporânea misturada, a banda-dupla de Cláudio canta e toca na ponte bamba entre o caipira atemporal e o atual sertanejo (pós-)universitário. “Mamãe, eu estou gostando da empregada/ e cada dia que passa eu gosto mais”, diz a letra de uma das canções (abaixo), trilhando a rota interiorana de violências bandeirantes imemoriais, que adentra Minas e pode levar ao estado de Goiás do antigo “ídolo das empregadas” Odair José.

Uma visita ao Palco Principal, já na primeira noite joanina, decifra a queixa do historiador Valter Cassalho: as novas gerações de festeiros se aglomeram aqui, sempre em torno de outras sonoridades, que não as tradicionalmente caipiras. Nascido em Piracaia e morador de Joanópolis, Juninho Serafranny canta um pop-folk-rock que ecoa tanto o sertanejo moderno do Brasil de dentro como a country music norte-americana, como atesta uma releitura suave de “Harvest Moon” (1992), do canadense Neil Young.

IMG_5425A praxe (ou timidez?) joanopolense recomenda que o público não se aproxime demais dos palcos. Mesmo em shows mais concorridos de qualquer dos palcos, a norma é restar entre o artista e a plateia um semivazio, frequentemente ocupado pelas evoluções espontâneas de crianças, cachorros de rua, alguns bebuns e o senhor amalucado e barbudo (um lobisomem?) que “mora” na praça. No show de Serafranny, uma senhora sorridente rompe o semivazio e ocupa o gargarejo, de maquininha fotográfica em punho: ela é a mãe do guitarrista da banda.

A contemporaneidade (que Cassalho interpreta como perda de raiz) norteia o arrasta-pé pós-tudo da banda local Chicamandú, cujo forró pouco se lembra dos patronos de junhos nordestinos Luiz Gonzaga Jackson do Pandeiro e se mostra primo-irmão do forró eletrônico também nordestino, do tecnobrega paraense, do funk carioca-e-paulista abusivo das “novinhas” (abaixo), da influência onipresente do cearense Wesley Safadão.

Se a modernidade pop-sertaneja-forrozeira atravessa toda a programação do Palco Principal e os alto-falantes da praça adoram o “Admirável Gado Novo” (1979) do paraibano Zé Ramalho, a tradição autóctone segue comandando o Palco Caipira. Na tarde de São João, Mário e Matias relembram o pagode mineiro de Tião Carreiro (1934-1993), uma das glórias indeléveis da canção caipira brasileira. Aqui, pode-se ouvir o verso “a serra da Mantiqueira nunca serrou”, do histórico pagode de trocadilhos “Falou e Disse” (gravado em 1971 por Tião Carreiro e Pardinho), mirando de frente a serra que nunca serrou.

A catira paulista retorna ao Palco Caipira no sábado, com a viola, as vestes vermelhas e os pés calçados em botas de vaqueiro dos integrantes da Catira União Lobatense, de Monteiro Lobato (outro município da divisa com Minas Gerais, a 132 quilômetros de São Paulo). A tradição familiar predomina sobre os formatos do showbiz, numa formação em que dançam e sapateiam juntos crianças, jovens, adultos e idosos.

Seu Manoel, um dos catireiros lobatenses, explica que se trata de uma dança originária dos índios, e leva este repórter a mais e mais horas de reflexão: o que é a música caipira, senão o saber indígena flechado no coração pela catequização europeia? Pergunto ao homem moreno com prenome português se ele é descendente indígena, e a resposta é eloquente: “Não, não. Sou, sou, sim. Sou, sou, sou, sou sim, sou. O meu avô é que era índio”.

No entardecer do sábado, a joanopolense Orquestra de Viola Matutos da Mantiqueira faz bonito ao som do “Chico Mineiro” (1945), clássico da dupla paulista Tonico e Tinoco, de olho no sopé da serra que vai dar nas terras do Chico. No palco, jovens e velhos e homens e mulheres dão pista da característica familiar da orquestra. No gargarejo semiocupado, a formação (tradicional, já se pode dizer?) em trio criança-cachorro-bebum evolui com desenvoltura.

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As comidas

Como convém a qualquer festejo junino, a comida é motor fundamental da festa joanopolitana. O inverno, nesses dias, torna o São João frio, mas longe de gelado.

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IMG_5850Na sempre superlotada Rua Caipira, os shows de música caipira rivalizam com um rol extenso de refeições juninas salgadas e doces. Na barraca da polenta, conduzida pelo restaurante Bom Tempero, o alimento italianado vem nas versões frita, crocante, cremosa, recheada, com parmesão.

O cardápio à base do milho verde é consumido em todo lugar, seja nas barracas da Rua Caipira, nos curaus, pamonhas e bolos servidos em todo canto, seja nas espigas fumegantes dos carrinhos de rua. Peruas abarrotadas de produtos estacionadas nas ruas laterais fazem a manutenção do estoque e tratores de manutenção chegam a circular pelo território de festa, mas o braço forte é mesmo o veículo ideal para transportar as espigas a seus destinos (à direita).

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A barraca do Boteco Tiririca se especializa numa iguaria junina com origem nas florestas de araucária da região Sul do país: o pinhão. Há do tradicional pinhão cozido (acima) a criações como escondidinho de pinhão, bolinho de pinhão, quibe de pinhão, pinhão empanado e costela bovina no bafo com farofa de pinhão.

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IMG_5866O longo texto no cardápio exalta benefícios para a saúde humana que incluem o combate à anemia e ao mau colesterol. A senhora que atende a barraca mostra com orgulho como são feitos os pratos, no fogão a lenha e no grande cupinzeiro transformado em forno – tudo trazido e montado na rua exclusivamente para o evento. A costela no bafo é graciosamente servida num cabo da enxada.

IMG_5405No setor dos bebes, logo à entrada da Rua Caipira uma choupana feita de toras de madeira oferece ponto de encontro à população rural da cidade com o chamariz de um café gratuito feito no fogão a lenha com chaminé e servido de enormes bules metálicos. Na parte alcoólica, quentão e vinho quente são onipresentes, dentro e fora da rua junina, fora e dentro dos estabelecimentos comerciais do centro da cidade.

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A Rua Caipira é o núcleo gastronômico junino, mas é apenas uma célula da festa, que se espalha pela praça da igreja e afora. Ali, se ultrapassam as tradições joaninas numa orgia doce de frutas cristalizadas, cocadas, pés-de-moleque (e de moça), merengues, fondues, morangos e uvas cobertos com chocolate (os “chocoespetos”), maçãs do amor, churros, tapiocas, pipocas caramelizadas, bombons, trufas, choconhaques quentes, quentões de morango – e, noutra vertente, toda gama de drinques alcoólicos.

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A comilança doce e salgada (pastéis, crepes, cachorros quentes, x-sanduíches, tapiocas) convive com um parque de diversões modesto, mas luminoso e concorrido (chapéu mexicano, carrinho de bate-bate, tobogã, tiro ao alvo, cama elástica…), com um concorridíssimo bazar de roupas e bugigangas (onde se destacam muitos refugiados haitianos e africanos) e com a pequena quermesse oficial da igreja (canjica, arroz doce, bolo de milho, carne louca), liderada por freiras vestidas em hábitos.

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Os costumes juninos

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Religiosamente, os sinos da igreja se combinam ao som de rojões e a uma cantiga em louvor a São João nos alto-falantes públicos, três vezes por dia: ao amanhecer, ao meio-dia e ao entardecer. Rojões e traques explodem pelas esquinas, de manhã, de tarde e de noite. Balões existem, mas apenas como figuras decorativas nos postes da praça.

Uma tradição mantida com esforço é a da Alvorada, que desfila pelas ruas da cidade às 6 horas da manhã de São João, batendo tambor e festando. Virado, o músico joanopolense Alex Soto, 23 anos, explica a tradição: “Na madrugada do dia 23 para o dia 24, todo mundo sai às ruas chamando o povo pra sair às 6 horas da manhã e comemorar o São João”. Quanto ao próprio estilo musical, que apresentou na primeira noite de festa, ele o define como “pantaneiro, meio Almir Sater, modificado pro caipira”.

A fogueira junina não goza de grande prestígio na festa de Joanópolis. No início da noite da quinta-feira, ela arde em estertores à entrada da quermesse da igreja, isolada dos festeiros entre grades, por questões de segurança. Não há, assim, o pula-fogueira para as quadrilhas que se sucedem ao longo dos cinco dias, no calçadão bem em frente à entrada da igreja, também povoados por olguedos tradicionais vindos de várias cidades vizinhas e fanfarras, teatros de boi e balés de estudantes locais.

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Isso não significa que as danças juninas saiam desprestigiadas da festa, ao contrário. Há quadrilhas para todo gosto, da mais tipicamente caipira e joanopolense, caso da Quadrilha Arraial das Flores, ao estardalhaço visual, musical e coreográfico da Quadrilha Tia Valdelice, vinda de São Vicente, na Baixada Santista (vídeo abaixo).

A Arraial das Flores, composta democraticamente por crianças, jovens, adultos e idosos, causa comoção e gargalhadas desde a chegada da noiva, uma senhora que desfila pelo cinturão junino primeiro a pé, e em seguida acomodada na mimosa charrete do Sítio Chega Mais.

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De celular em punho servindo como guia, o padre-narrador conduz o casamento em roça gradeada da noiva senhora com o noivo bebum, entre comandos afrancesados de “avancê” e “retornê”. O diálogo só poderia acontecer em Joanópolis:

– Óia o lobisomem!

– Êêêê!

– É mentira!

– Aaaah…

– Mai aqui tem mesmo!…

O coreto central da grande praça é território livre das crianças, mas na tarde de São João vira também ponto de descanso dos rapazes cobertos de serragem que descansam da tarefa hercúlea de chegar ao topo do tradicional pau de sebo. A brincadeira garante gostosas gargalhadas – além da torcida para o desafiante “Sarney” (vídeo abaixo).

IMG_5684A religiosidade católica aflora na quermesse das freiras e nas camisetas de devotos, como a da romaria dos caminhoneiros de Joanópolis a Aparecida (no Vale do Paraíba). Mas a religião que se expressa nos folguedos de rua está bem mais para sincrética – embora ainda governada pelo catolicismo e por São João.

Congada, moçambique e caiapó marcam tradicionalmente a festa de Joanópolis, os dois primeiros bastante marcados pela influência africana e o último forjado na identidade indígena.

O caiapó não esteve representado neste ano de 2016, mas o Moçambique Esperança, de Monteiro Lobato (abaixo), e a Congada de São Benedito e do Divino Espírito Santo, de Socorro, levaram sincretismo ao calçadão em frente à igreja na tarde do sábado.

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Em devoção a São Benedito e acompanhado tradicionalmente por reco-reco, tarol, rabeca, tamborins, pandeiros e violas, o primeiro folguedo reflete a misturanças étnicas nas peles dos moçambiqueiros participantes. O Esperança vem de mala e cuia do município do Vale do Paraíba onde o escritor Monteiro Lobato (nascido em Taubaté) tinha fazenda – a Cuca e o Saci Pererê do Sítio do Picapau Amarelo são vizinhos do lobisomem de Joanópolis.

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O historiador Cassalho explica os signos para lá de híbridos do folguedo: “As congadas vêm pra reverenciar São João e São Benedito. Toda procissão de São Benedito tem que sair primeiro, porque isso garante que não chova na festa. São Benedito tem de estar de vermelho. Uma coisa que existia e não existe mais são crianças vestidas de São João. As pessoas traziam carneiros, e crianças vestidas acompanhavam a procissão com os carneiros”.

A congada encena o choque de civilizações europeias, asiáticas e africanas na América, como ele descreve: “A congada tem um viés muito curioso, a luta dos cristãos católicos com os mouros, misturada com o culto aos santos negros, a dança da Rainha Ginga, da Rainha Conga. Eles mantêm o cristianismo dentro da religião negra, por uma imposição até mais que por uma posição plural. É uma mistura da coroação do rei do Congo com a história dos 12 pares de França, a luta de Carlos Magno contra os mouros. Curioso é que os santos são negros. Os padroeiros da congada são ou Santa Ifigênia ou Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos ou São Benedito, em especial”.

No seio de congadas, moçambiques, catiras e caiapós, os tempos giram tal qual a roda gigante que não existe no parquinho de Joanópolis. Da misturança das tradições há muito superadas nascem as tradições que, no futuro do pretérito, se ressentirão por se sentir rejeitadas pelas novas juventudes. A roda gira quadrada.

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O lobisomem

IMG_5352IMG_5712Independentemente da data cívica sacro-profana de São João, a figura mítica do lobisomem é onipresente na cidade, quase sempre na versão humanizada e harmonizada apregoada pela Associação de Criadores de Lobisomens. Os sustos dos pesadelos infantis se diluem por bonecos de tamanho humano, em geral sorridentes e simpáticos.

O homem-lobo veste paletó caipira xadrez no Empório Cachoeira e enverga jeans e tênis de listas na Rua Caipira, em cuja entrada uma versão tipicamente HQ oferece a oportunidade de os visitantes enfiarem as cabeças em trajes caipiras e fotografarem abraçados com o peludo.

IMG_5359

IMG_5440A mitologia invade a seara gastronômica, principalmente na barraca da Comida do Lobisomem, que insinua o poder de fazer nascer pelos em quem decida devorar um típico pratão de comida mineira-paulista-tropeira: torresmo, linguiça, carne de porco, banana frita, canjiquinha, arroz com açafrão. Noutra barraca, o caldo do lobisomem (frango com farinha) disputa preferências com o caldo de quenga (frango com mandioquinha).

IMG_5750A cerveja artesanal da terra também capitaliza o turismo do imaginário. A barraca das cervejas Wolfman Bier explica num banner a que veio o representante joanopolitano do monstro: “Dizem que quem tem muita sorte nasce virado pra lua, e Joanópolis parece ser uma dessas cidades em que a lua dá muita sorte. Principalmente a lua cheia, pois é nela que o lobisomem costuma aparecer. Temido no passado, o lobisomem joanopolense passou por nova metamorfose, deixou de ser amaldiçoado para dar sorte, de mau passou a brejeiro e de temido passou a ser amigo”.

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Exceção à simpatia generalizada dos lobisomens joanopolitanos, Elias (ou Lia) anda caracterizado numa versão mais assustadora do monstro, com bocarra de dentes arreganhados, olhos injetados, corpo coberto de pelos e pés com garras crispadas. É tanta gente nos dias todos da festa que só cruzo com ele uma única vez, na Rua Caipira.

Quem conta é o presidente da ACL, que Lia não recebe para andar feito lobisomem. “Ele faz porque gosta, gratuitamente”, explica Cassalho. “Foi pra praia de lobisomem com prancha de surfe, foi pra festa de peão de Barretos como lobisomem, foi ver o Alckmin, mordeu o Alckmin. Ele faz isso espontaneamente, divulga nossa cidade em tudo que é lugar”.

O prefeito Adauto Oliveira anda pela praça cercado por crianças que pedem ingressos gratuitos para os brinquedos do parque de diversão. Durante nossa conversa, Adauto demonstra que nem todos os habitantes da cidade apreciam a fama de “capital do lobisomem”. “É controverso. Parte da população não gosta, acredita que Joanópolis é cidade de João, de João Batista, do catolicismo. Os evangélicos falam que Joanópolis é cidade de Jesus, e não de João. Os mais religiosos não gostam do misticismo do lobisomem. Mas Joanópolis é uma cidade turística, e se existe um nicho místico que se pode explorar, tem que explorar mesmo.”

Adauto não demora, no entanto, a puxar para a conversa um homem de chapéu preto e camisa vermelha, que apresenta como um dos lobisomens da cidade. “Esse é o lobisomem vereador da cidade. Ele se transforma.”

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O prefeito apresenta o vereador Carneiro. Mas é lobo ou é carneiro? “É um carneiro que vira lobisomem à noite”, diz o prefeito. “Sou um carneiro que vira cordeirinho na mão do homem”, retruca o vereador, não sei se séria ou ironicamente.

Já que o carneiro-lobo deu a deixa, criemos lobisomens. Cassalho dá dicas sobre como se pode detectar um lobisomem entre nós. “Como veem o cara que é lobisomem? É um cara que tem uma maldição, um fadário de virar lobisomem nas luas cheias. Acabam tendo dó, porque é um cara magro, que vomita muito durante o dia, passa mal, é até meio doente. Tempos atrás, o lobisomem foi tido como uma pessoa que tinha amarelão.” Além de vizinho da Cuca e do Saci, o lobisomem, quem diria, parece ser primo do velho Jeca Tatu que tanto irritou e incomodou mr. Monteiro Lobato.

“Se for macilento, muito peludo, ficar muito à noite pra rua e tiver sobrancelha unida é lobisomem”, prossegue Cassalho (seria o monocelho criador de Emília, Pedrinho e Narizinho um representante da espécie?). Mais: “O sétimo filho homem da família é lobisomem. Quem tirar sangue do lobisomem vira lobisomem – se ele passar, você der uma pedrada nele e tirar sangue, você vai assumir o fadário dele. A menos que seja um objeto de prata. Nenhum lobisomem pode ser ferido com prata, que sangra até morrer”.

Afinado com a cultura do imaginário, o historiador procura reler o mito sob o olhar joanopolense: “O lobisomem dá medo, mas é gente boa. ‘É um rapazinho bom, só tem um defeitim de ser lobisomem.’ As pessoas não se assustam com o fato de alguém ser ou não ser. No mundo caipira há uma convivência harmônica com o diferente. Aí é que vem a questão hollywoodiana, só porque é diferente não tem que caçar você, por na jaula, matar. O que faz o caipira? Ele convive harmonicamente com o lobisomem. Isso é muito positivo, o respeito à diversidade.”

Pacificado, o lobisomem reina em Joanópolis, mas não consegue fazer frente à juventude local, que vara as madrugadas juninas e vê o sol nascer ao som de uma rave improvisada por um DJ que se coloca na entrada de uma das lojas de variedades da praça da igreja. Enquanto uns deixam a festa no ônibus que parte diariamente para a capital às 6h da manhã e outros batem cabelo na rave até o sol queimar, o lobisomem se recosta numa cadeira da Rua Caipira, em busca de energia para cinco jornadas consecutivas de festança.

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P.S.: Durante os quatro dias que passa em Joanópolis, o repórter não se depara nenhuma vez com manifestação política de qualquer natureza ou palavra de ordem contra (ou a favor d)o presidente interino Michel Temer, um conterrâneo paulista interiorano de Tietê.

 

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Para nortear a festa

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Elza Soares quis gritar um “fora Temer” pela fresta da festa de abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro? “Garota de Ipanema”, “Aquarela do Brasil” e “País Tropical” são cartões postais sonoros inescapáveis para uma festa imodesta como esta? Anitta tem o direito de representar a música popular brasileira? O funk carioca e o tecnobrega paraense mereciam estar ali no epicentro do Maracanã como filhotes emblemáticos da histórica e gloriosa MPB?

Sob indagações coletivas como essas, a música brasileira voltou ao pódio na primeira sexta-feira olímpica, recobrando por alguns minutos um canecão de uma competição tão sujeita a altos e baixos como tem sido a do “nosso” futebol. Uma série de apresentações de tirar o fôlego (protagonizadas por ícones MPB e por novos valores locais) acendeu o farol, para animar e nortear a festa. Em momento-síntese, Paulinho da Viola cantou o Hino Nacional com introspecção ímpar, como nunca antes na história deste país.

Ao lado do carioca Antonio Pinto, o paulistano de 49 anos Beto Villares foi o diretor musical da cerimônia de abertura da Olimpíada brasileira, e do alto desse título fez prevalecer o título de uma festa musical 100% brasileira. Trouxe para tanto a larga experiência como compositor de trilhas sonoras para cinema (Cidade BaixaO Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias) e TV (Cidade dos HomensFilhos do Carnaval) e produtor musical de artistas como CéuPato FuZélia Duncan, Siba Rodrigo Campos.

Numa conversa por WhatsApp, Beto respondeu a questões como as expostas no primeiro parágrafo, entre outras tantas. E foi bonita a festa, pá.

A cerimônia de abertura vista da mesa de som - fotos de Beto Villares

O palco da cerimônia de abertura visto da mesa de som – fotos de Beto Villares

Pedro Alexandre Sanches: Qual foi exatamente sua participação na cerimônia de abertura das Olimpíadas do Rio?

Beto Villares: Fui, junto com Antonio Pinto, o diretor musical, compositor das trilhas originais e produtor das músicas da cerimônia de abertura.

PAS: Me chamou atenção imediatamente que, ao contrário do que aconteceu na abertura da Copa do Mundo do Brasil, só houve espaço para música e músicos brasileiros na abertura da Olimpíada. Como foi tomada essa decisão?

BV: Foi sempre pensado assim. Embora isso não garanta nenhuma unanimidade, é uma festa de exaltação e exposição do nosso país. Não fariam sentido artistas e músicas de fora. Essa escolha veio já dos diretores, Daniela ThomasFernando Meirelles Andrucha Waddington, e combinou com o que eu e Antonio já achávamos melhor.

PAS: Não houve pressão para inserir estrelas internacionais na festa? Eu jamais imaginei que seria possível o que aconteceu, a partir da experiência da cerimônia da Copa do Brasil com Jennifer Lopez Pitbull.

BV: Nenhuma pressão nesse sentido. A gente teve bastante liberdade, mais até do que em certas trilhas de cinema, onde os produtores interferem mais. Aqui eles deixaram a gente fazer o conteúdo.

PAS: Vocês jamais pensaram em colocar uma Lady Gaga, um Ricky Martin, uma Beyoncé?

BV: Não, nunca.

PAS: Até faria algum sentido, em se tratando de uma festa planetária, não?

BV: Acho que não. É o Brasil falando pro planeta, sobre o Brasil.

PAS: Na fórmula da Copa com Jennifer Lopez, Pitbull e a brasileira Claudia Leitte entendi, usando a boa vontade, uma intenção de mostrar e integrar as Américas…

BV: Entendi a vontade de fazer hits chicletes chatos.

PAS: Hahahaha.

BV: E outra coisa, em nenhuma Olimpíada fez-se isso, de ter artistas de fora do país-sede. Os britânicos, então, nem sabem que isso existe, rs.

PAS: Teve esta diferença também, a Copa quis compor o próximo sucesso, a Olimpíada preferiu mostrar a história da música brasileira, estou certo?

Beto Villares com Jorge Ben Jor nos bastidores da produção

Beto Villares com Jorge Ben Jor nos bastidores da produção

BV: Sim, mas nós fomos convocados em certo momento a participar de reuniões para compor algo assim, não para a abertura, mas para o evento. Mas não nos sentimos à vontade nem com vontade. Nossa proposta não levada a cabo era acharmos algum Tim Maia ou Jorge Ben Jor clássico e fazermos uma versão. Não gostamos dessa ideia de encomendar músic-hit-tema, mas aceito que tem gente que gosta e sabe até fazer. Não é a nossa praia.

PAS: Ah, então é uma característica da Olimpíada se deter na cultura do país-sede? Desculpe a ignorância, não sou muito ligado no assunto.

BV: Sim, é. Principalmente na abertura, que é menos show, mais dramatúrgica, mas também nas outras.

PAS: Fazer um “País Tropical” em inglês, por exemplo? Seria uma pedreira, né?

BV: Nem pensei nisso. O Jorge, então, nem vinha pra conversa, com um papo desses, rs.

PAS: Agora tem festa de encerramento? Pode ser diferente a linha, com artistas internacionais etc.?

BV: Acho que vai ser bem nacional, mas estou totalmente fora dessa. O produtor é o incrível Alê Siqueira, a diretora é do carnaval, Rosa Magalhães. Acho que vai ser bem bonito, aí é com eles.

PAS: Na prática, a direção desses grandes espetáculos de abertura e encerramento ficou a cargo da Rede Globo?

BV: Não! Foi do Fernando, Andrucha e Dani, contratados por Marco Balich e Abel Gomes (Balich Worldwide events e SRCOM). Eles foram os produtores executivos e criativos. Durante todo o processo tivemos toda a liberdade pra desenvolver as nossas músicas, mas eles sempre estavam acompanhando, às vezes questionando, mas sempre apoiando muito. Não houve outras interferências, a não ser nas questões mais tradicionais, do COI (Comitê Olímpico Internacional), como nos casos do hino olímpico e dos juramentos, que são momentos menos artísticos e mais protocolares, e não tivemos a mesma liberdade, de, por exemplo, fazermos algo como fizemos com o Hino Nacional. Mas, mesmo assim, a música da entrada da bandeira olímpica é nossa, e na dos aros olímpicos e da pira a gente fez o que quis. Eu não imaginava que ia ser assim, antes. Esses são os momentos mais simbólicos, e foi com a cara que a gente quis, sem fanfarras sinfônicas. Gosto também delas, mas a gente prefere fazer com a nossa cara.

PAS: Como foram imaginados a dramaturgia da cerimônia e o encaixe da música nela?

BV: Foram feitos em mais de um ano de trabalho, conversas, reuniões entre eu, Antonio e o trio de diretores. Muitos estudos, tentativas, ideias que vingaram e outras que não. Como qualquer processo criativo e coletivo. Porém com mais incertezas, pois tudo se define mais pro final, e isso é bem desgastante. Mas faz parte, pelo que pude aprender.

 

PAS: Qual era a ideia sua e do Antonio, quanto à linha musical a ser seguida?

Paulinho da Viola entre Beto e Antonio Pinto

Paulinho da Viola entre Beto e Antonio Pinto

BV: Não ser pomposo nem grandiloquente demais. Ser brasileiro, o máximo possível. Por exemplo, no acendimento da pira, momento final e simbólico, o solo é de rabeca, e a base, de violão e percussão. O Hino Nacional, outro exemplo, foi re-harmonizado e feito sem pompas, mas com carinho e amor, pelo Paulinho da Viola. Nunca se fez isso com o hino, num evento oficial, muito menos desse porte.

PAS: Paulinho da Viola cantando o Hino Nacional é de uma sutileza pra qual o mundo provavelmente não estava preparado. Dá para medir que qualidades de reação causou, aqui e fora?

BV: Difícil pra mim medir isso, mas é o momento pelo qual eu tenho mais carinho e orgulho de ter participado. Paulinho é um cara muito especial, e eu pude estar perto dele e sentir isso, e só tenho a agradecer muito por isso, e pelos outros ídolos que gravei nesse trabalho, além dos novos talentos e inúmeros músicos que conheci.

PAS: Foi maravilhosa a participação de Paulinho, não só no hino, como no chamamento aos velhos mestres do samba em Bebadosamba”. Como foi imaginado esse momento?

BV: A Daniela, eu creio, imaginou isso tudo. Ela, Fernando e Andrucha são pessoas incansavelmente criativas. E nós somos assim também com o som, com a música. Aliás, tentamos ser, sempre. Porque no final de um processo desses está todo mundo muito cansado, e eles ainda têm que corrigir tudo que precisar, com a nossa ajuda, até onde der.

PAS: Falando, de início, sobre o time de ícones da MPB que vocês reuniram. Sei que as ausências são inevitáveis, mas faltaram Chico BuarqueMilton NascimentoRoberto CarlosErasmo CarlosJoão BoscoFagner… E as mulheres, Maria BethâniaGal CostaRita LeeAlcioneFafá de Belém… O que separa quem esteve presente de quem não esteve?

BV: Nem eu saberia te explicar direito. Acho que o que foi possível e o que não foi. Antes disso, o que foi pensado e o que não foi. Eu poderia ajudar a engrossar essa lista das ausências, mas não vale a pena. Basicamente isso, ou porque não se pensou, entre tantas outras ideias. Ou porque não foi possível, pois muita ideia não passou das primeiras conversas. É um trabalho de exposição gigante, e nada é tão fácil. Respondi? Rs. E também, vai ter muita gente ainda, nas três festas seguintes, o encerramento olímpico e a abertura e o encerramento paralímpicos. A abertura tem esse viés dramatúrgica, maior, e não é tão show. Mas se eu mandasse em tudo, e conseguisse ter todas as ideias, além de produzir e compor música, teria levado pelo menos o Hermeto Pascoal.

PAS: Imagino que Chico e Roberto são menos decifráveis para o mundo que Caetano Veloso Gilberto Gil, não? Mas nesse caso Paulinho também seria… Quisera Luiz GonzagaDorival Caymmi Jackson do Pandeiro estivessem vivos, hahaha. João Gilberto?

BV: Pois é. Por isso que eu digo que não se explica tão facilmente. Teve a “Construção” instrumental, com uma menção a “Deus Lhe Pague” (ambas de Chico Buarque), na metrópole de Caxias, com um som mais industrial na percussão, e usando o arranjo bem colado no original, do Rogério Duprat, que já traz em poesia musical, todo o som de uma cidade louca. Essa lista não acaba nunca. Mas não dá pra imaginar que uma abertura de Olimpíada é um especial de música brasileira. Não é.

PAS: Opa, você tem razão, estava esquecido da presença indireta do Chico.

BV: Cartola! Tentamos e tentamos, e não achamos lugar no enredo. Podem reclamar. Eu amo todos esses nomes que você falou, mais que o Michael Jackson e os Rolling Stones juntos. Capiba teve! O Antonio fez o arranjo do Capiba, também há muito tempo.

PAS: Onde foi Capiba?

BV: Ninguém de São Paulo conhece. “Toada e Desafio”, primeira música depois do anúncio do Thomas Bach e do não-anúncio do Michel Temer. Na criação da natureza, antes dos índios.

PAS: Não reconheci o Capiba… /o\ De todo modo, houve a preocupação de colocar elementos musicais mais reconhecíveis pelo mundo, né? “Aquele Abraço”, “Garota de Ipanema”, “País Tropical”, “Aquarela do Brasil”, “Isto Aqui o Que É”…, que são músicas que falam mais especificamente do Rio de Janeiro que do Brasil como um todo, certo?

BV: Total, doce pra quem quer doce, e misturado, outros sabores, nem só um, nem só o outro.

PAS: Por que o “Canto de Ossanha”, Beto?

BV: Não fui eu que escolhi, mas adoro Baden Powell e, especificamente, os afro-sambas.

PAS: Quem escolheu?

BV: Posso perguntar pro Antonio.

Beto, Elza Soares e Andrucha Waddington

Beto, Elza Soares e Andrucha Waddington

PAS: Estou louco de hospício em ouvir um “fora Temer” gigante na voz de Elza Soares?

BV: Não tão louco. Também acredito que ela tenha sacado isso, gostado desse sentido. Eu gostei.

PAS: Não gerou desconforto na produção, na organização ou nas redes exibidoras a presença do termo “traidor” na voz de Elza?

BV: Não soube de nada.

PAS: Foi linguagem da fresta?

BV: O que é isso? Aproveitar uma fresta?

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PAS: Um idioma histórico e clássico da MPB… 😉

BV: Depois vou ler. De todo modo, teve muita mensagem assim, digamos, contra a atual agenda. Lea T conduzindo a delegação brasileira, a destruição da natureza e o progresso maluco. Aliás, em matéria de meio ambiente, já estávamos mal antes, mas, como vemos, sempre pode piorar.

PAS: Elza Soares integrou um bloco de resistência feminina, protagonizado por jovens e talentosas artistas do funk. Pode falar um pouco sobre essas duas vertentes do roteiro, a presença feminina e as linguagens musicais atuais (funk, tecnobrega etc.)? Esse bloco se mostra até agora o grande acerto do roteiro para o Brasil, se pensarmos no desempenho da judoca Rafaela Silva e de várias outras atletas.

BV: Legal que você diga isso, porque muita gente critica tudo, como se essas meninas e a Elza e as novas linguagens urbanas e periféricas não tivessem tendo esse destaque, tanto na festa de abertura como nos esportes.

PAS: A presença de Anitta deixou William Waack bem alterado

BV: E foi! Rs.

PAS: O que vocês quiseram fazer com as linguagens mais jovens, funk, rap, tecnobrega, LudmillaKarol Conka, Anitta, Gang do Eletro…?

BV: MC Sofia é poderosa, já com 12 anos, e quisemos que ela e a Karol dessem um recado sobre esse poder. Quisemos ter justamente o novo, ao lado ou misturado com a MPB, a eletrônica do funk e do Pará, essa última mais desconhecida daqui e de fora do Brasil também. Vou procurar depois os textos dos diretores para releases, podem ajudar nessas respostas também, porque eles iam trazendo a maioria dessas ideias, e não fica completo se você tiver só os meus porquês.

PAS: Certo, seria ótimo depois eu fazer uma conversa com Antonio também, mas estou achando legal esse papo entre um dos milhares de jornalistas envolvidos de algum jeito com o evento e um dos produtores envolvidos diretamente. Pessoalmente, eu morreria de felicidade no momento em que Joelma entrasse no Maracanã se mostrando exatamente como ela é. O mundo não estaria preparado? E o Brasil, estaria?

BV: Acho que não. Essas questões dividem o público, você não acha? O quanto reclamaram antes, que teria show da Anitta e da Ludmilla, que teria Wesley Safadão em vez de Heitor Villa-Lobos.

PAS: Com certeza dividem. Anitta dividiu muito?

BV: Anitta, até agora, não dividiu. Não vi ninguém dizer que gostou, assumidamente.

PAS: Hahahahahahaha.

BV: Eu gostei dela, que aliás cantou muito bem.

PAS: Mas aí Caetano e Gil atuaram como escudeiros, né? Confesso que eu preferia ver a Joelma no meio dos dois…

BV: Kkk. Agora que você tá falando, queria ter levado o Chimbinha!

uliS: Pergunto da Joelma como poderia perguntar de qualquer astro sertanejo que represente nosso lado mais interiorano e, digamos, cafona. Há uma resistência do Brasil quanto a se mostrar assim para o mundo e para si mesmo?

BV: Olha, creio que há, sim. Há também um distanciamento dessa turma da qual faço parte pro sertanejo e pra alguns estilos que são bem populares. É verdade.

PAS: Porque, puxa, Joelma, como Gaby Amarantos, é Beyoncé, Rihanna e mais uma dezena de estrelas internacionais que a garotada brasileira ama amar, todas numa só. Só que muita gente não gosta de ser ver nesse espelho.

BV: Gaby acho que é mais gostada, por uma galera.

 

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PAS: Como foi o trabalho de composição das trilhas originais?

BV: Nós começamos o trabalho de criação e de pensar a produção no primeiro semestre do ano passado. Muita coisa já começou a surgir, mas os temas originais foram se desenvolvendo mais neste ano, ao mesmo tempo em que o espetáculo se arrematava. Teve a ajuda e a participação de muitos músicos, como os irmãos Sami William Bordokan (instrumentos árabes), Ricardo Araújo (guitarra portuguesa), Siba, Ricardo Herz (violinos  e rabecas), Fanta Konaté e Bukassa KabengueleMarlui MirandaTeco CardosoMauricio Badé e muitos, muitos outros. Eu e o Antonio, sem querer, fomos nos imitando em alguns temas e harmonias, e isso depois pareceu até combinado. É engraçado e foi legal, porque foi um processo em que cada um ia fazendo uma parte, com sua equipe, e depois começamos a juntar mais as coisas, perceber as sequências. Eu fiz muita coisa, joguei muita coisa fora, e o Antonio passou por isso igual. Trilha é assim. Eu e ele já somos amigos há mais de 20 anos, já tivemos estúdio juntos por uns oito anos, mas esse é o segundo trabalho que fazemos juntos, de fato. O primeiro foi o filme Menino Maluquinho 2 (inspirado na obra de Ziraldo, pai de Antonio Pinto e Daniela Thomas), em 1998. Eu sou muito fã dele, desde que nos conhecemos. É um músico intuitivo, enérgico, e gênio das melodias. A gente sempre teve trabalhos e ritmos diferentes, sempre se admirando, e se enchendo o saco ao mesmo tempo… Lembro, em algum momento da década passada, ele passando na minha sala: “Para de fazer esse Richard Clayderman“. E eu jogava alguma trilha fora. Ja enchi o saco dele bastante também, sempre para o bem, em todos casos. A gente se ama. E agora fizemos juntos uma trilha de abertura de Olimpíada! Só deu pra acreditar vendo.

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Tibério Gaspar (1943-2017)

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“A gente corre na BR-3/ a gente morre na BR-3″, cantou em tempo de soul music o rojão black power Toni Tornado, na rota para vencer a etapa nacional do Festival Internacional da Canção (FIC) de 1970 na Rede Globo. Em alta de popularidade, o ditador de plantão, Emílio Garrastazu Médici, foi apertar a mão do negão e lhe pedir que vencesse também a fase internacional da competição (o que não se concretizou), como prova fotografia resgatada por Zuza Homem de Mello no livro A Era dos Festivais – Uma Parábola (2003).

Em novembro de 1970, o colunista social Ibrahim Sued complicou a vida do general Medici em página da revista Veja, ao insinuar que o foguete que rasgava o céu, o Jesus Cristo feito em aço e a viagem multicolorida de que falavam os versos de BR-3 se referiam ao uso de heroína, e não à estrada federal de ligação entre o Rio de Janeiro e Belo Horizonte.

Talvez fossem mais danosos à imagem da ditadura civil-popular e de seu aparato de mídia e propaganda outros versos da música escrita por Antonio Adolfo Tibério Gaspar (ouça lista de canções abaixo *) e interpretada por Tornado com o acompanhamento coral negro do Trio Ternura: “Há um crime no longo asfalto dessa estrada/ e uma notícia fabricada pro novo herói de cada mês”. Mas foi a cruzada moral antidrogas que ajudou a levar de roldão as carreiras musicais em compasso black is beautiful de Tornado, Wilson Simonal e Evinha, entre outros, todas orbitando então em torno do conceito macunaímico de “pilantragem”. Embora não-negros, Adolfo e Gaspar deslizaram na mesma enxurrada.

Décadas mais tarde, em 2002, o até então apenas compositor Tibério Gaspar lançou um disco solo em que incluiu uma faixa em tempo de rap chamada “A História da BR-3″, que na introdução ele classificou como “a verdadeira história da BR-3″. A letra do rap amplamente anônimo é direta e reta: “A BR-3 era somente uma estrada/ que ligava o Rio de Janeiro a Belô/ mas alguém falou que era a melô da picada/ e um cara mau-caráter publicou o caô/ dizendo que essa estrada era uma veia do braço/ que era um papo que rolava entre drogado e vapor/ (…) a BR-3 era o que a gente vivia/ em cada curva um crime, em cada reta um terror/ o dia virou noite e toda noite era fria/ a gente ficou surdo, mudo e cego de dor/ havia dedo-duro, pau-de-arara e censura/ e muita gente boa se mandou do Brasil/ a lei da ditadura era porrada e tortura/ pra quem não concordasse baioneta e fuzil/ a gente corre na BR-3/ a gente morre na BR-3″.

Capa de  "Alegria Alegria Vol. 2 ou Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga" (1968), de Wilson Simonal, com "Sá Marina"

Capa de “Alegria Alegria Vol. 2 ou Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga” (1968), de Wilson Simonal, com “Sá Marina”

Com a derrocada da pilantragem, ruíram juntos o supostamente conservador Simonal (que no processo de reconstrução histórica da ditadura anterior se tornaria símbolo brasileiro do comportamento direitista, delator e traidor da pátria) e o declaradamente esquerdista Tibério, que em 2008 chegaria a se candidatar a vereador carioca pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), o mais afrobrasileiro dos partidos progressistas (e não-progressistas) daqui. Mais coisas uniram e unem os dois do que supõe nossa vã filosofia saudosa do hit pilantra dançante “Sá Marina” (1968), que Gaspar e Adolfo compuseram para Simonal cantar e suingar – e que em 1970 acabou ganhando versão em inglês na voz do gênio soul Stevie Wonder, sob o título “Pretty World”.

Capa de "Música Nossa" (1967), em que Agostinho dos Santos apresentava a nova geração de compositores brasileiros, com "Caminhada", de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar

Capa de “Música Nossa” (1967), em que Agostinho dos Santos apresentava nova geração de compositores brasileiros com Milton, Edu Lobo, Chico Buarque, Gilberto Gil, Dori Caymmi, Guarabyra – e “Caminhada”, de Adolfo e Gaspar

Atuando como compositor da produtora Brazuca, de Antonio Adolfo, Tibério Gaspar ajudou a pigmentar a música brasileira de negra, à revelia da própria pele clara. “Caminhada”, a primeira composição célebre da dupla, saiu para o mundo em 1967, da garganta de Agostinho dos Santos, bossa-novista negro como as noites que não têm luar e padrinho de vozes e identidades pretas como as de Simonal e Milton Nascimento.

Simonal e a Brazuca eram um protótipo de mainstream na virada dos anos 1960 e 1970, tal como o era a então jovem Rede Globo. A dupla Adolfo-Gaspar tornou-se usina fornecedora de temas de festival para a emissora de TV que era afiliada preferencial da madrinha ditadura. Agostinho dos Santos cantou a grandiloquente “Visão” na competição de 1968 (a mesma edição bipolarizada entre a canção de exílio “Sabiá” de Chico Buarque Tom Jobim e o hino de protesto “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores” de Geraldo Vandré).

“Um reino sem um rei/ um povo sem nação/ um rufo no tambor/ pra um feito sem herói/ um homem não constrói se vive na prisão/ um tiro de fuzil dispara imensa dor/ desponta o fim/ explode o céu/ derrete o sol/ desmancha em luz/ tanques e canhões/ falece o amor”, agulhava “Visão”, que ainda em 1968 ganharia versão exemplar na voz do índio uruguaiobrasileiro Taiguara.

Capa de "Antonio Adolfo & A Brazuca" (1969)

Capa de “Antonio Adolfo & A Brazuca” (1969)

A fórmula de loa algo cafajeste às figuras femininas de “Sá Marina” e “Meia-Volta (Ana Cristina)” (gravada por Claudette Soares em 1969) animou Adolfo a Brazuca em grupo musical e inscrever “Juliana” (da dupla Adolfo-Gaspar) no FIC de 1969. O combo Antonio Adolfo & A Brazuca faturou a segunda colocação no festival, sob versos ingênuos-maliciosos sobre a menina que “se fez mulher” e “viu o amor chegar”. No mesmo ano, em consonância com a brazuca-simonalmania, Elis Regina gravou, de Antonio & Tibério, a toada moderna quase psicodélica “Giro”.

Capa de "Eva 2001" (1969), de Evinha

Capa de “Eva 2001″ (1969), de Evinha

Egressa do jovem-guardista Trio Esperança e apadrinhada por Simonal em carreira solo, Evinha celebrizou em voz de veludo outra vertente televisiva da dupla de compositores Adolfo & Gaspar, ao ressignificar “Teletema” (1970), lançada primeiro na trilha sonora da novela global Véu de Noiva (1969), protagonizada pela “namoradinha do Brasil” Regina Duarte, em tempos muito anteriores ao da garota-propaganda de vassoura de João Doria Jr. Até Erasmo Carlos gravou “Teletema” em 1970, para não nos deixar esquecer que ele e Roberto Carlos também eram anexos à pilantrália de Simonal.

Capa de "Banda Veneno de Erlon Chaves" (1971), com "Eu Também Quero Mocotó"

Capa de “Banda Veneno de Erlon Chaves” (1971), com “Eu Também Quero Mocotó”

Toni Tornado e Arlete Salles, 1970

Toni Tornado e Arlete Salles, 1970

A terceira vertente das toadas modernas da dupla seria aberta por “BR-3″, que no entanto seria abatida logo que alçasse voo no FIC de 1970, lado a lado com a onipotência do padrinho Simonal, o namoro transracial de Toni Tornado com a atriz loura Arlete Salles (apresentadora do festival) e o escândalo transracial do maestro negro Erlon Chaves e da Banda Veneno em “Eu Também Quero Mocotó”, que trouxe a miss sulista Vera Fischer para sacudir os mocotós ao som afrocarioca de Jorge Ben.

A indignação das esposas moralistas dos generais e a perseguição político-policial aos, digamos, hippies drogados globalizados do FIC 1970 retardou em alguns anos a explosão de um movimento black power à brasileira, que só nos anos 1990, com os Racionais MC’s talvez fossem mais danosos à imagem da ditadura civil-popular e de seu aparato de propaganda, viveria um apogeu mais forte que a repressão político-policial.

A Brazuca tentou seguir adiante, inclusive empresariando e lançando para o FIC de 1972 a andrógina transracial Maria Alcina, ao som da festa futebolística “Fio Maravilha”, de Jorge Ben. O sonho de corporação soul-funk-samba-rock não durou muito mais do que isso, e Antonio Adolfo foi seguir trajetória virtuosa na música independente e, mui simbolicamente, apenas instrumental.

Capa de "Guilherme Lamounier" (1973)

Capa de “Guilherme Lamounier” (1973)

Ao menos artisticamente, Tibério Gaspar foi daqueles que aderiram ao desbunde pós-tortura e pós-tropicália. Seu grande momento nesse aspecto foi o álbum seminal de 1973 do hippie Guilherme Lamounier, todo composto em parceria entre os dois, com hinos marginais pacifistas como “Os Telhados do Mundo” e “Será Que Eu Pus um Grilo na Sua Cabeça?”.

Em 1974, foi Tibério quem apresentou o amigo blackpau Tim Maia à seita transreligiosa Universo em Desencanto, que culminaria na fase doidamente genial Tim Maia Racional (de Tibério, Tim gravaria “Canção para Cristina”, em 1979). Em 1977, quando a ex-“ternurinha” jovem-guardista Wanderléa se coligasse ao referencial Egberto Gismonti no LP Vamos Que Eu Já Vou, Tibério colaboraria com a corpulenta “Dança Mineira”.

Capa de "Tibério Canta Gaspar" (2002)

Capa de “Tibério Canta Gaspar” (2002)

Tão errático quanto Simonal (ou mais ainda) depois que direita e esquerda se uniram para dizimar a pilantragem, o modesto compositor carioca de 1943 lançaria independentemente Tibério Canta Gaspar, em 2002, em grande medida para desafogar o grito parado na garganta d'”A História da BR-3″. O canto de cisne, antes da morte neste 15 de fevereiro de 2017, seria o álbum Caminhada (2015), com composições inéditas e revisões autorais da canção-título inaugural, de “Dança Mineira” e de “Será Que Eu Pus um Grilo na Sua Cabeça?”.

O testamento mais loqwuz fica por conta da taiguariana faixa de abertura, “A Voz da América”, que conta quem era Tibério Gaspar, com ou sem Jesus Cristo crucificado em aço: “Nasce de dentro de nós/ queima como fogaréu/ gana de animal feroz/ desde Caracas a Montevidéu/ (…) tá na lua de Gonzaga, tá na nossa saga, tá no cantador de cordel/ há tanto céu/ vem nos versos de Neruda, no mistério inca, nos pés de Pelé/ tá na cara de Guevara, tá na nossa cara/ (…) tá na marca de LamarcaMaradonaSennaPiazzolla, Tom Noel“.

O refrão de “A Voz da América” nos despede de Tibério Gaspar sintetizando o destino sempre e sempre e sempre adiado, à sombra de Wilson Simonal e de Eduardo Galeano: “Terra americana/ garra americana/ raça americana/ um grito no ar/ o mundo ouvirá a voz da América”.

Capa de "Caminhada" (2015)

Capa de “Caminhada” (2015)

 

(P.S.: além das citadas acima, a playlist para Tibério Gaspar contém gravações de suas canções por Herb Alpert & Tijuana BrassSergio Mendes & Brasil ’66Som Três de Cesar Camargo Mariano, Doris MonteiroZizi Possi, Ivete Sangalo Kid Abelha. Não são de Gaspar as faixas “Eu Também Quero Mocotó” e “Fio Maravilha”, de Jorge Ben, e “Imunização Racional – Que Beleza”, de Tim Maia.)

 


Belchior: ano passado eu não morro

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Lançado em 2004, meu livro Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa) (Boitempo) anda tão desaparecido como andou Belchior nos últimos anos de uma GRANDE vida. Em homenagem à morte do GRANDE artista e pensador cearense em momento histórico tão eloquente, resgato aqui (*) (com alguns reparos e penduricalhos) o capítulo devotado ao GRANDE homem no livro protagonizado por Roberto CarlosErasmo CarlosWanderléa etc.

Viva BELCHIOR.

 

Viva Belchior (1946-2017)

Não quero lhe falar, meu grande amor…

Havia perigo na esquina, e o perigo se chamava Belchior, que tanto Roberto como Erasmo Carlos notavam com simpatia nos primeiros minutos. Mas espere um pouco.

Antes disso, procurando solapar o silêncio imposto pelo regime ditatorial e tentando reatar o compromisso de brasilidade por através do silêncio, Milton Nascimento deu bela voz, em 1970, a um manifesto sul-americano chamado “Para Lennon e McCartney” e composto por Lô Borges, Marcio Borges e Fernando Brant, três integrantes do que passaria para a história como clube da esquina, de que Milton seria líder e porta-voz principal. Vociferavam os da esquina, querendo atingir John Lennon e Paul McCartney: “Eu sou da América do Sul/ eu sei, vocês nem vão saber/ mas agora sou caubói/ sou do ouro, eu sou vocês/ sou do mundo, sou Minas Gerais” [1]. Estavam preocupados em dinamitar os restos mortais dos Beatles e em se revalidar como cidadãos do mundo, mas John e Paul continuaram sem saber do lixo ocidental cá de baixo. O movimento mineiro ganhou força e prestígio, mas nunca chegou a adquirir contornos de penetração popular como os que conseguiam artistas “do povo” que varriam um espectro entre Roberto Carlos e Raul Seixas.

Quase concomitantemente aparecia um “clube da esquina nordestino”, construído de peculiaridades porque ficava no rincão ainda distante que era o Ceará e porque idolatrava apaixonadamente o tropicalismo personalista de Caetano Veloso. Estreando em disco em 1973, o dito Pessoal do Ceará (que, ao menos no LP Meu Corpo – Minha Embalagem – Todo Gasto na Viagem, se restringia a Ednardo e ao casal Rodger Rogério e Tetty), procurou fincar bandeira vinda de longe na história do pop brasileiro. Para aquele disco, Ednardo elaborou uma adaptação da passada “Para Lennon e McCartney” a que batizou “Terral”, que dizia mais ou menos assim: “Sou da América/ sul da América/ South America/ eu sou a nata do lixo, eu sou o luxo da aldeia, eu sou do Ceará”. Pouco depois, Ednardo voou solo e lançou O Romance do Pavão Mysteriozo (RCA Victor, 1974), encetando belíssima confissão de inadaptação na faixa “Pavão Mysteriozo”, mas de modo geral passando em brancas nuvens [2]. Por aqueles dias, o conterrâneo Raimundo Fagner também estreara em disco com Manera Fru Fru, Manera (Philips, 1973), homenageando-criticando seu ídolo Roberto Carlos (numa versão áspera do blues-iê-iê-iê “Nasci para Chorar”, vertido ao português em 1965 por Erasmo Carlos) e partindo para um discurso equivalente, como em “Cavalo Ferro”: “Montado num cavalo ferro/ vivi campos verdes, me enterro/ em terras tropicamericanas”. Em comum, todo aquele pessoal tinha a vontade ainda indecisa de migrar para o sul e fazer sucesso nacional (como haviam feito Caetano e Gil, vindos da Bahia, ou Milton, egresso de Minas Gerais). Estreavam no burburinho que ainda restava da cultura de festivais, embora houvessem, atrasados e mais longínquos, perdido o bonde do quiproquó de 1968. Ednardo, nascido em Fortaleza, em 1945, e Fagner, nascido em Orós, em 1950, viram de longe o rebuliço dos festivais da Record, tentando fazer o deles no microcosmo cearense e no ambiente universitário que frequentavam.

Belchior, 1974Eles tinham um amigo/parceiro chamado Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes. Nascido em Sobral, em 1946, 13º filho de uma família que chegaria aos 23, o futuro Belchior fora cantador de feira e poeta repentista em sua terra natal. Semi-migrou para Fortaleza para também se integrar à universidade (num inacabado curso de medicina). Iniciou o traumático período migratório vencendo no Rio de Janeiro o IV Festival Universitário da MPB, em 1971, com “Na Hora do Almoço”. Esperou ainda três anos para ter seu primeiro disco, juntando-se às estreias de Fagner e de Ednardo com Belchior (lançado pela gravadora brasileira Chantecler, em 1974), um disco todo pós-tropicalista, todo concretista, todo arroubado, todo arrojado.

Já de abertura, em “Mote e Glosa”, iniciava agressivamente nordestino, repetindo 28 vezes: “É o novo”. Em seguida, em “A Palo Seco” (que Ednardo lançara no disco do Pessoal do Ceará), de nome emprestado de poema de João Cabral de Melo Neto, aderia à retórica utópica sul-americana. “Tenho 25 anos de sonho e de sangue/ e de América do Sul/ por força deste destino/ o tango argentino/ me vai bem melhor que o blues”, cantava, inserindo melancolia própria no ideário da nova música cearense, num tema que era bem mais blues que tango. A voz anasalada, desencontrada, bem sertaneja, conduzia a um recado final de poesia dura e concreta, que era rascante, quase assassino, talvez suicida: “Eu quero é que esse canto torto feito faca corte a carne de vocês”. Quando o recado revoltado não vinha com esse grau de objetividade e agressividade (coisa que acontecia também na canção de ódio familiar “Na Hora do Almoço”, francamente influenciada pela tropicalista “Deus Vos Salve Esta Casa Santa”, de 1968, de Caetano Veloso e Torquato Neto), o disco evitava ceder ao palatável, recaindo no discurso concretista muito influenciado pelo Walter Franco de Ou Não (Continental, 1973) e pelo breve Caetano Veloso de Araçá azul (Philips, 1973) de “Bebelo”, “Máquina” (em duas versões) e “Cemitério” (esta influenciada pela tropicalista “Miserere nobis”, de Gilberto Gil e Capinan). A linguagem estava interditada, Belchior tentava fazer poesia visual com sua garganta inóspita, quase fanha, sob abundantes arranjos de cordas – e com muito sentimento blue de revolta.

Soou agressivo e hermético, passou em brancas nuvens, um pouco como já acontecera e continuava acontecendo aos parceiros de ex-exílio cearense. O destino reservava a Belchior, no entanto, uma rota diferente da de seus colegas originais, pelo menos numa primeira fase das carreiras de todos eles, a dos herméticos anos 70. Se Fagner e Ednardo conquistaram prestígio razoável e popularidade regular com receitas de concretismo, densidade poética e hermetismo, Belchior caiu primeiro no agrado do grande público, principalmente a partir do fato de Elis Regina tê-lo tomado como compositor-revelação e gravado, num só golpe, dois futuros sucessos tanto do campo da MPB intelectualizada quanto do pop de apelo de massa: “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida”. As duas abriram o disco Falso Brilhante (Philips, 1976), em que Elis aderia com vivacidade às utopias latino-americanas, associando Belchior com a panfletárias “Gracias a la Vida”, da chilena Violeta Parra, e “Los Hermanos”, do argentino Atahualpa Yupanqui, além de três panfletos mineiros-cariocas/suburbanos da dupla João Bosco/Aldir Blanc. (Elis e Wilson Simonal foram os primeiros intérpretes a gravar a breve dupla Fagner-Belchior, ambos em 1972, ela com “Mucuripe”, ele com “Noves Fora”).

Alucinação, 1976, de BelchiorO disco de Elis saiu quase simultaneamente a Alucinação, que marcaria a estreia de Belchior no conglomerado Philips (que já havia perdido Fagner, após um único disco gravado, mas queria manter a mítica da gravadora que possuía os mais contemporâneos e acachapantes artistas em seu elenco). Mas antes “Como Nossos Pais” já estava em circulação na voz de Elis, na temporada do show Falso Brilhante, que só mais tarde seria transformado em disco. “Paralelas” também colocaria por essa época Belchior em evidência, dessa vez na voz de Vanusa [3], mas as duas gravações de Elis foram essenciais para que o até então marginalizado cearense passasse a ter existência artística para todos os efeitos. Para Belchior, o advento de Elis podia significar sua admissão num lugar cobiçado, mas que não era bem dele – cinco anos mais novo que Roberto e Erasmo, quatro anos mais novo que Caetano e Chico, chegando atrasado ao cenário nacional, Belchior não era nem da geração daqueles todos nem da geração seguinte; estava sentado à beira do caminho das gerações. Para Elis, no entanto, aderir ao discurso de Belchior em “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida” embutia significados multifacetados – o principal dos quais um manifesto contra sua própria geração, uma corajosa autoprovocação dirigida não só à sua geração platinada como a ela própria, individualmente.

O arranjo de “Velha Roupa Colorida” descoloria um pouco a canção como um todo, por não primar pela sutileza. Mas colocava Elis numa posição estranha, de criticar as velhas roupas coloridas da geração hippie (à qual ela nunca se integrara de fato, chegando ao extremo de se opor com fúria ao lado mais colorido do hippie brasileiro – ou seja, a tropicália), e de engavetar nisso aí uma revisão cruel de tudo que ela própria vivera. “Você não sente, não vê, mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo/ que uma nova mudança em breve vai acontecer/ o que há algum tempo era novo, jovem, hoje é antigo/ e precisamos todos rejuvenescer”, cantava Elis, feito uma Janis Joplin entupida de blues. Já intérprete veterana, ela estava nisso alertando para a necessidade de renovação que vivia a MPB, e fornecia a Belchior o posto de arauto de tal nova geração, que ela por sua vez estava vindo anunciar. Belchior, quando escrevera tais versos, pensara em seus ídolos e heróis, que por ansiedade ou angústia de influência ele sentia necessidade brava de suplantar. Citava vários deles no segundo bloco da canção, quando executava um jogo concretista espelhado entre “never” e “raven”, ou seja, entre “nunca” e “corvo” – citando literalmente o poema “O Corvo” e seu autor, o norte-americano Edgar Allan Poe. Entre citações entrecruzadas aos Beatles, aos Rolling Stones, a Bob Dylan, a João Gilberto (“amor e flor”) e a Caetano Veloso (“cabelo ao vento”), o corvo de Poe voava do século XIX para cá, transmutando-se na poética de Belchior primeiro no “Blackbird” dos Beatles, depois no “Assum preto” de Luiz Gonzaga: “Blackbird me responde: ‘Tudo já ficou pra trás’”, “Assum preto me responde: ‘O passado nunca mais’”. Ironicamente, era o passado que dizia ao poeta narrador que o passado morrera; e assim fazia também Elis Regina, cantando tal canção e pensando (mas apenas em parte) estar alfinetando os tropicalistas, ídolos coloridos inequívocos de Belchior. Deslocando o eixo para lá do heroísmo musical, a canção pretendia ser mesmo uma crítica de geração, inconformada com o aborto da efervescência dos protestos pré-AI-5: “Nunca mais você saiu à rua em grupo reunido/ o dedo em V, cabelo ao vento, amor e flor, que é do cartaz?/ no passado a mente, o corpo é diferente/ e o passado é uma roupa que não nos serve mais”. Ambíguo, o narrador pretendia comemorar o passar do tempo, avisando que a roupa antiga das passeatas e dos protestos ficara puída. Mas isso era menos uma celebração que um lamento, em que a identidade bipartida Elis/Belchior conclamava de volta os seus, criticando a geração e meia que ambos, juntos, constituíam. Política de autocrítica, lamentava-se a acomodação dos antigos e novos passeantes, também porque não se podia condenar a ditadura que enfiara a todos debaixo da cama do medo e do terror noturno. Elis, frequentemente suspeita de reacionarismo, era quem peitava chamar de volta, mesmo que discretamente, o espírito “passado” das passeatas. Porque, ora, não era justamente o passado, o pássaro mítico nordestino assum preto (aquele dos olhos furados para que cantasse melhor, aquele que fizera Gal Costa cantar melhor numa declaração de amor a Luiz Gonzaga), quem acusava a morte do passado?

O jogo ambíguo e indeciso se completava em “Como Nossos Pais”, canção-mito da MPB pela interpretação sofrida e lancinante que Elis Regina lhe imprimiu. Ali estava de novo a provocação inconformada sobre o abandono da cultura de passeatas e festivais: “Já faz tempo eu vi você na rua/ cabelo ao vento, gente jovem reunida/ na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais”. Internalizava-se a dor provocada de fora para dentro pela censura militar, e o narrador ousava acusar os seus (e a si próprio) de adotarem procedimento equivalente a de seus pérfidos pais (os militares, bem entendido): “Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo que fizemos/ ainda somos os mesmos e vivemos/ ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. A primeira mensagem era “ainda somos os mesmos e vivemos” – uma elegia implícita (e apenas retórica) a quem optara pela resistência, pela luta armada e, muitas vezes, pela morte. No segundo turno virava “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais” – corrosivo por demais, o narrador equiparava a juventude de 1976 a seus carcereiros, ou, menos, os jovens entrando agora na música com vários ídolos de 1968 agora esmorecidos. Uma referência mais direta à nata pensante da MPB pré-AI-5 se dava no trecho “hoje eu sei que quem e deu a ideia/ de uma nova consciência e juventude/ tá em casa guardado por Deus contanto vis metais”. Os mais atingidos aqui eram Roberto Carlos, ídolo iê-iê-iê transmutado em 1976 em Frank Sinatra pós-juvenil [4], e os tropicalistas, que mais que ninguém haviam desferido novas consciência e juventude a quem os recebera de queixo caído em 1968. Elis, militante e resistente em 1968, pregava-se a peça da autocrítica, querendo metabolizar em 1976 o que não acreditara ter feito em 1968. Belchior criticava a tudo e a todos, feito roleta russa de metralhadora giratória, se é que isso existia.

Havia lotes de decepção ambígua na longa letra de “Como Nossos Pais”. Em “viver é melhor que sonhar/ eu sei que o amor é uma coisa boa/ mas também sei que qualquer canto/ é menor do que a vida de qualquer pessoa”, ao mesmo tempo suspeitava da veracidade do amor e desdenhava do poder mítico da canção, para ele ainda menor que a vida cotidiana de cidadão qualquer – noções de homens como Rogério Duprat e Tom Zé, anti-heróicos e anti-heróis por princípio e ética, estavam impregnadas no coração antiestelar de Belchior. Em “Por isso cuidado, meu bem, há perigo na esquina/ eles venceram e o sinal está fechado pra nós/ que somos jovens” colocava frente a frente e cara a cara o “tudo é perigoso/ tudo é divino, maravilhoso” de Caetano e Gil e o “sinal fechado” de Paulinho da Viola – quem vencera fora o espalhafato talvez vazio da tropicália, quem perdera fora a consciência provavelmente contrita do samba pós-bossa nova; mas também quem vencera fora a repressão militar, quem perdera fora a juventude idealista destroçada pelo AI-5. Enfim, em “nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam, não/ você diz que depois deles não apareceu mais ninguém/ você pode até dizer que eu tô por fora/ ou então que eu tô inventando/ mas é você que ama o passado e que não vê/ que o novo sempre vem”, Elis e Belchior se uniam para decretar, uma vez mais, a falência do passado e para celebrar o iminente advento do novo. Elis tentando suicidar-se, Belchior tentando ser o novo, encetavam um inédito brado de ruptura, que entretanto era muito mais textual que musical (e portanto parecia bem menos novo que a antiga tropicália).

A convivência entre o velho e o novo, ou melhor, entre o velho precoce e o novo precocemente envelhecido, entre Elis Regina e Belchior, transformava a canção em pleno paradoxo. E “Como Nossos Pais” conquistaria ouvintes apaixonados ao decorrer longo das décadas, um pouco pelo poder de sedução da constatação geracional atormentada e sempre válida de que “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais” e muito pela profunda melancolia de arranjo e interpretação somada à extrema coragem de Elis Regina em cantar tais palavras. “Como Nossos Pais” saía dos grotões do Ceará para a condição de uma das mais importantes e gigantescas gravações já feitas em música popular brasileira, por uma artista que cumpriria o mito e se semi-suicidaria de fato cinco anos mais tarde.

E ainda haveria, por cima desse barulho todo, a interpretação do próprio autor.

No disco Alucinação, tais conflitos, na voz acaipirada e fanhosa do compositor, ganhavam contornos, sim, de conflito geracional, mas de um conflito geracional interno. Isso estava brilhantemente exposto na faixa “Sujeito de Sorte”, nos versos “presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte/ porque, apesar de muito moço/ me sinto são e salvo e forte/ e tenho comigo pensado: ‘Deus é brasileiro e anda do meu lado’/ e assim já não posso morrer no ano passado”. É claro que trocando “velho” por “novo” na proposição “apesar de muito velho me sinto são e salvo e forte” Belchior estava provocando o sistema repressivo, que entre torturas, desaparecimentos e assassinatos tornara a juventude forma de risco de vida. Mas dentro disso havia o conflito interno novo/velho, de quem estava no meio de duas gerações, de quem deveria ter acontecido em 1968, mas teve de mendigar espaço por muito mais tempo que outros pouco mais velhos do que ele. De novo, não poder morrer no ano passado era expressão da angústia do autor diante de suas perspectivas temporais. Magoando-se por não se sentir ouvido, já regravava “A Palo Seco”, repetindo a assinatura cruel, quase sádica, de que “eu quero é que esse canto torto feito faca corte a carne de vocês”.

Mas Alucinação, que por muitos prismas poderia ser considerado o primeiro álbum de Belchior, era um beijo e um soco no grande sistema da música popular brasileira. Era um beijo porque Belchior fora convencido, ao menos por ora, a abrandar o furor concretista, hermético e anticomercial do disco anterior e a enfileirar uma rede de melodias tristonhas de altíssimo potencial popular no Brasil ainda triste de 1976 – mais que isso, o fazia dentro de uma combinação em nada revolucionária (nem havia músicos especialmente brilhantes o acompanhando nesse disco), mas em tudo inusitada, de letras quilométricas à Bob Dylan, mais estruturas de blues, de rock e de country rock, mais um evidente fundo de forrós nordestinos que saltava para primeiro plano aqui e ali. Era um soco porque, por trás disso, era a declaração de guerra de Belchior a uma plêiade assustadora de ressentimentos e enfrentamentos atávicos, históricos, nordestinos, poéticos, contemporâneos, musicais, filosóficos. A declaração desses princípios de guerra estava na faixa “Como o Diabo Gosta”: “O que transforma o velho no novo [5]/ bendito fruto do povo será/ e a única forma que pode ser norma/ é nenhuma regra ter/ é nunca fazer nada que o mestre mandar/ sempre desobedecer, nunca reverenciar”.

Estava em campo, portanto, o discípulo cheio de angústia de influência, que fazia dessa angústia desobediência e irreverência. Os primeiros dardos vinham já na primeira canção, “Apenas um Rapaz Latino-Americano”, para sempre uma das que marcariam a tez artística do moço nordestino, carrancudo, machão, de coração duro – o anti-Roberto Carlos, portanto –, que apesar dessas características todas virava agora poeta da canção popular. As primeiras farpas iam para o mestre tropicalista Caetano Veloso, pouco mais velho, mas até então (e para sempre, na verdade) bem mais sortudo que Belchior. Primeiro o narrador lembrava que não lhe saía da cabeça a canção de rádio que dizia que “tudo é divino, tudo é maravilhoso”; logo adiante, contrariava o mestre, afirmando: “Mas sei que nada é divino/ nada, nada é maravilhoso, nada”, não sem antes haver atacado também outra canção de Caetano, “É Proibido Proibir” (1968), achando (com toda razão) que em 1976 “tudo é proibido”. Belchior provocava com plena consciência e noção de perigo, e assim se justificava, diante uma pergunta do jornalista Tárik de Souza, sobre se sua música era um rescaldo do tropicalismo: “Creio que sim. Liquidando as últimas unidades do estoque. Principalmente porque acho que estava precisando. Era uma emergência de consciência, isso. As pessoas estavam na expectativa de reflexão artística sobre esse trabalho, de que do ponto de vista estético alguém se manifestasse. É um dado ousado, sabe? O artista não faz isso impunemente. Tenho toda a tranqüilidade de quem sabe disso. Ninguém pode cantar como convém, sem querer ferir ninguém. Isso está numa das músicas” [6]. Sublinharia algo parecido em 1977, já em fase mais cuidadosa em relação a provocações em excesso: “Eu acho que esse pessoal do tropicalismo teve uma contribuição importantíssima na nossa música. Mas não tenho diante deles uma atitude de idolatria. Acredito que, para a sua época, eles trouxeram mudanças muito importantes. Mas, hoje, eles prosseguem fazendo aquelas coisas na base de magia, de misticismo, como se ainda vivêssemos na década de 60. Eles se recusam a adotar um comportamento racional para interpretar a realidade” [7]. Fazia pois essas provocações aos ídolos tropicalistas, não maiores que as que Elis Regina já portara em “Como Nossos Pais”.

Mais importante em “Apenas um Rapaz Latino-Americano” era a declaração de princípios que norteraria suas convicções e o grosso de sua obra: “Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve/ correta, branca, suave, muito limpa, muito leve/ sons, palavras são navalhas/ eu não posso cantar como convém/ sem querer ferir ninguém/ mas não se preocupe, meu amigo,/ com os horrores que eu lhe digo/ isto é somente uma canção/ a vida realmente é diferente/ quer dizer, ao vivo é muito pior”. Essa ia, na mosca, ao coração de Roberto Carlos e de todos que compreendiam como RC a canção, como gangorra dos romantismos e/ou carrossel multicolorido de parquinho de diversão. A canção era cruel, mas a vida, ah, a vida… era ainda muito pior, segundo as convicções de Belchior.

E, para quem pensasse que aquele narrador estava se colocando em confronto direto com a passividade romântica de Roberto Carlos e com a “neutralidade” “apolítica” de Caetano Veloso, não era só contra eles que Belchior voltava baterias. Sobrava também para Raul Seixas, o inverso conceitual de Roberto e o reverso comportamental de Caetano. “Alucinação”, canção-título, nem era direcionada explicitamente a Raul, mas antes a toda a geração “perdida” que se entregara, desde o início da década de 70, à desideologia do desbunde, do barato total, da entrega desesperançada à cultura das drogas contra qualquer pretensão de ativismo político. Ney Matogrosso recebia estocada que podia ser interpretada como grosseira, talvez mesmo homofóbica: “Um rapaz delicado que canta e requebra (é demais?)” [8]. Vestindo a roupa de careta revolucionário, o narrador afirmava que não estava interessado em nenhuma fantasia, e atacava: “A minha alucinação é suportar o dia-a-dia/ e o meu delírio é experiência com as coisas reais”. Havia, de fato, uma citação remetida a Raul, em “eu não estou interessado em nenhuma teoria/ nem nessas coisas do Oriente, romances astrais” – Gilberto Gil andava às voltas com macrobiótica, refazendas e sabedorias orientais; Raul cantara o bem e o mal de braços atados num “romance astral”, em “O Trem das 7” (1974). Apesar de citado de raspão, o maluco beleza que pregava a formação da “sociedade alternativa” vestiu direitinho a carapuça. Ainda em 1976, compôs e lançou “Eu Também Vou Reclamar”, em resposta principalmente a Belchior: “Apesar dessa voz chata e renitente/ eu não tô aqui pra me queixar/ e nem sou apenas o cantor [9]/ (…) mas agora eu também resolvi dar uma queixadinha/ porque eu sou um rapaz latino-americano/ que também sabe se lamentar”. Belchior declararia, sobre polêmicas dessa natureza: “Aprendi, pela literatura, que polêmica e divergências de ideias são coisas enriquecedoras. A história é feita de tensões e oposições” [10]. Desgraçadamente para ele, o epípeto de “chato” amplificado por Raul Seixas pegaria, e seria ecoado pela imprensa em reportagens e críticas.

Derrotada a tradição da briga e da luta verbal no Brasil, tal duelo musicado parece até frivolidade, mas em 1976 refletia mais um hábito saudável que uma rixa vã e vil entre astros abregalhados. Desse liquidificador, não custa lembrar que tanto Belchior como Raul e Caetano pertenciam à mesma gravadora e estavam sob os auspícios do mesmo André Midani – sentindo-se atingido, Raul tomou a briga para si e respondeu na lata, coisa que Caetano não faria jamais. O debate, se persistisse, ia continuar só entre os representantes populares do anticarlismo. No mais, Belchior tentava explicar na própria “Alucinação” a razão de tanta provocação, e usava para isso uma convicção tão cândida quanto duvidosa: “Amar e mudar as coisas me interessa mais”.

No reverso do pedido de mudança dos outros, havia a manifestação magoada e menos autocrítica de suas próprias penas. “Fotografia 3 x 4” era a canção-símbolo desse lado do autor e, ao que atestavam inúmeras entrevistas dele à imprensa na segunda metade dos anos 70, era pura autobiografia. Entre citações cruzadas a Luiz Gonzaga e Fernando Pessoa, o narrador contava sua sina de retirante que vinha dar nas metrópoles do sul (Rio e São Paulo, onde Belchior viveu alternadamente antes do sucesso), sofria batidas policiais constantes (por causa da aparência “suspeita” de nordestino pobre), tinha de morar no bairro carioca marginal da Lapa, não conseguia se adaptar e se integrar a crises familiares e a questões monetárias, por coração endurecido não sabia ou não podia conservar o amor (“a mulher que eu amei não pôde me seguir, não”), dormia ao relento (“a noite fria me ensinou/ a amar mais o meu dia”)… Tudo desembocava, evidentemente, na revolta angustiada contra Caetano. “Veloso, ‘o sol (não) é tão bonito’ pra quem vem do norte e vai morar na rua”, lamentava, referindo-se gráfica e antropofagicamente ao verso “o sol é tão bonito”, de “Alegria, Alegria” (1967). Traumatizado com as contingências por que passou e pela carência ressentida que o acometia, o narrador buscava se salvar na identificação com o público, com o brasileiro médio que ia ouvi-lo e possuía, provavelmente, história parecida com a sua: “A minha história é talvez igual à sua/ jovem que desceu do norte e que no sul/ viveu na rua e que ficou desnorteado/ como é comum no seu tempo/ e que ficou desapontado/ (…) e que ficou apaixonado e violento/ (…) eu sou como você”. À violência social que recebia na testa, o narrador respondia com violência interna equivalente, à maneira mesma do adolescente Alex da Laranja Mecânica (1971) de Stanley Kubrick (citada literalmente, aliás, na faixa “Alucinação”). O conflito essencial, por cima de outros muitos e fortes, era o da adolescência vivida em tempo inadequado, do sentimento de inadequação ao tempo (à idade) e à geografia (o sentimento de auto-exílio acometendo o retirante nordestino). A tristeza era a prova dos nove de Belchior, como era também a de Roberto Carlos. No primeiro, a tristeza era expelida com gases fétidos de vômito. No segundo, era ruminada e transtornada em medo calado, em pânico reprimido. “Eu sou como você” era constatação de aprendiz dirigida ao mestre Roberto Carlos, mais que a qualquer outro brasileiro.

 

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Coração Selvagem, 1977, de BelchiorE então Belchior seguiu André Midani e foi participar da criação da Warner do Brasil – possivelmente como carro-chefe da nova gravadora, dadas as vendagens expressivas (em torno de 100 mil exemplares, dizia-se) de Alucinação. Para turbinar tal possibilidade, foi agregada à imagem do macho latino-americano bigodudo um novo rótulo, de “sex symbol”. A capa do disco Coração Selvagem (1977) expunha um Belchior de torso nu, banhado de mortiça luz lilás. Os anos seguintes Belchior passou desmentindo à imprensa a intenção de ser símbolo sexual, mas as mulheres passaram a desafogar comportamento de histeria sexual em seus shows, e nunca ficou totalmente esclarecido se o latin lover nascera do próprio Belchior, de estratégia da Warner ou de espontaneidade.

Belchior parecia enquadrado nesse novo disco, Coração Selvagem (1977). Encolhia-se a metralhadora giratória de citações, quanto mais se fossem no estilo provocativo do disco anterior – essas praticamente não haviam, ao menos não da forma literal e audaz de antes. Restava para a literalidade (mas também nem tanto assim) a faixa-título, que abria o disco citando Caetano, Gal, Roberto e Erasmo. O narrador repetia “meu bem, meu bem, meu bem” como em “Sua Estupidez” (lançada em 1969 por Roberto e regravada em 1971 por Gal Fatal), para afinal fazer a ponte com os estrangeirismos da jovem guarda e de “Baby”, o hino tropicalista cantado em 1968 por Gal e Caetano: “Meu bem, meu bem, meu bem/ que outros cantores chamam baby”. Nem era propriamente crítico, a não ser no trecho duro que dizia que “talvez eu morra jovem/ alguma curva do caminho/ algum punhal de amor traído/ completará o meu destino”. Desconfortável diante da noção de traição que seus princípios de discípulo rebelde aos ídolos lhe atraía, o narrador previa morte breve (morte artística, será?) e encetava mais uma provocação: citava de passagem “As Curvas da Estrada de Santos” de Roberto e Erasmo, mas colocava como aposto à citação a idéia do “amor traído”, um tema tabu para os jovens senhores católicos da jovem guarda, que até admitiam ser trocados por outro em suas canções, mas jamais se colocavam na posição de namorado traído (afinal, a traição era e é e sempre será um pecado, de acordo com o ideário romântico-cristão).

Em sinal de enquadramento também musical, instrumentistas de linhagem foram convocados para Coração Selvagem, e José Roberto Bertrami (o indefectível tecladista do Azymuth, hegemônico em discos dos anos 70) foi incumbido dos arranjos de base, que tomavam um inesperado tom movido por órgãos e coros femininos. Soava algo new age, uma tentativa não muito bem sucedida de encontrar o “novo” som. O que não mudava era a tônica textual da busca desesperada pelo novo – reivindicada ainda naquela tecla do conflito interno de meia geração que acometia Belchior, de novo compositor solitário de todas as canções do álbum. A obsessão pelo novo aparecia em “Caso Comum de Trânsito”, agora com enfoque autocrítico, desencantado, impotente: “Você fica perdendo o sono, pretendendo ser o dono das palavras, ser a voz do que é novo/ e a vida, sempre nova, acontecendo de surpresa, caindo como pedra sobre o povo”. Reaparecia na retomada de uma música perdida no álbum de estréia, “Todo Sujo de Batom”, em que agora se podia perceber bem o conflito geracional do narrador. “Quero uma balada nova, falando de brotos, de coisas assim,/ de money, de banho de lua, de ti e de mim,/ um cara tão sentimental”, cantava o pregador do novo, ao mesmo tempo em que citava velharias como os brotos do iê-iê-iê, o “Money” dos Beatles, o “Banho de Lua” de Celly Campello, a retórica sentimental à Altemar Dutra e, claro, Roberto Carlos. Aparecia, sobretudo, na obscura canção-manifesto de Coração Selvagem, “Clamor no Deserto”.

Essa última era onde o linguajar cru e cruel de antes reaparecia de forma mais nítida, desde o início: “Eh, meus amigos/ um novo momento precisa chegar/ sei que é difícil começar tudo de novo/ mas eu quero tentar”. Trovador esganiçado de deficiente dicção, partia então para a constatação precoce de que sua rota não seria plana: “A minha garota não me compreende/ e diz que desse jeito apresso o meu fim”. “Minha garota”, no contexto, podia ser facilmente substituída por “críticas”, “pressões”, “perplexidade” de quem não estava acostumado com nem pretendia ficar ouvindo as navalhadas na carne de Belchior. Se ele era a voz do não, “não” seria o que mais provavelmente iria ouvir de volta, e “Clamor no Deserto” demonstrava que esse contragolpe já fazia efeito no autor. Pois seguia a canção, abertamente incomodada com as más reações estimuladas por seu cancioneiro mórbido: “Quem me conhece me pede eu eu seja mais alegre/ mas é que nada acontece que alegre meu coração”. “Clamor no Deserto”, entretanto, decretava que não haveria capitulação, pelo menos por ora, e ainda arriscava uma nota sarcástica de espírito enfant terrible contra o que se acusava haver em suas canções: “Ano passado, apesar da dor e do silêncio,/ eu cantei como se fosse morrer de alegria/ hoje eu lhe falo em futuro e você tira o revólver/ puxa o talão de cheque e me dá um bom-dia”. A conclusão era a mais pessimista possível, citando o “grande irmão” pré-apocalíptico do romance 1984, de George Orwell: “Mas só falta um tempo para 1, 9, 8, 4/ agora eu estou em paz: o que eu temia chegou”.

O profundo desencanto de “Clamor no Deserto” se consumava em isolamento – o autor julgava estar jogando pérolas aos porcos, ao que parece – e se completava em outros momentos do disco. Pululavam canções sobre medo (“Pequeno Mapa do Tempo”, composta segundo ele em 1968 [11]), melancolia (sua gravação para “Paralelas”, já analisada no capítulo anterior), dor e infelicidade. Nesses dois últimos quesitos, era imbatível “Galos, Noites e Quintais” (lançada no ano anterior pelo sambista paulista Jair Rodrigues), de um narrador que lamentava profunda e nostalgicamente seu momento presente: “Quando eu não tinha o olhar lacrimoso/ que hoje eu trago e tenho (…)/ eu era alegre como um rio,/ um bicho, um bando de pardais”. O desenlace da canção optava pela lamúria (“mas veio o tempo negro e a força fez/ comigo o mal que a força sempre faz”), mas também por corajosa confissão de infelicidade (“não sou feliz, mas não sou mudo/ hoje eu canto muito mais”). Versos de tal canção teriam fundamental importância no cenário político brasileiro de então, mas é que em tudo que Belchior cantava saltava ao primeiro plano de sua voz inadaptada e indomada uma preponderância pessoal, existencial, um mal do século fincado no século errado.

Todos os Sentidos, 1978, BelchiorO composto de estratégias, desencantos e poses de sex symbol funcionou: em apenas três meses, Coração Selvagem vendeu 80 mil cópias. E credenciou produção rica e procura de modernização para o disco seguinte pela Warner, Todos os Sentidos, de um Belchior em fundo negro, camisa aberta, mão no rosto, olhar fatal. Já era 1978, e estava mais claro para onde tendia a se direcionar aquela ideia sexista que envolvia a embalagem do artista cearense. Desde o disco anterior para cá, chegara ao Brasil o boom norte-americano da discothèque, que ganhava contornos de massa pelo potencial popular da novela global Dancin’ Days, de Gilberto Braga. A música-tema da novela, de mesmo nome, era interpretada pelo grupo feminino de disco music Frenéticas, que lançara seu primeiro álbum no ano anterior, pela mesma Warner de Belchior. Havia no ar uma nova proposta hedonista, a tal política do corpo, o vale-tudo sexual movido não mais a maconha ou LSD, mas agora, principalmente, a cocaína (essa veia aparecia exposta na canção de marginália “Ter ou Não Ter”, uma epopeia deslindada em sexo por dinheiro, drogas e assassinato que inspiraria, anos mais tarde, sua filhota “Faroeste Caboclo”, da Legião Urbana de Renato Russo). Todos os Sentidos revelava que a estratégia que movia Belchior era a mesma da linha mestra da Warner, de injetar no Brasil balanço funk, música para dançar, energia sexual anfetaminada e energizada pela cocaína.

Convocou-se para a maioria dos arranjos do disco o futuro mago dos sintetizadores e dos arranjos primeiro funkeados, em seguida de pique discothèque, mais adiante new wave: Lincoln Olivetti, que já andava envolvido com o artista que mais se adequava a sua proposta, Tim Maia. As Frenéticas foram instadas a participar de forma ostensiva numa faixa – possivelmente contrariado, Belchior fê-las pronunciar letra francamente antipop, quase toda em latim (enquanto o próprio autor mencionava em inglês referências pós-modernizadas a Beatles, Bob Dylan e Cole Porter). Era uma garatuja musical, e Belchior parecia mesmo não desejar outra coisa para o esquisitíssimo disco-funk “Corpos Terrestres”. Letras complicadas em português mesmo acompanhavam outros exemplares discothèque do álbum, como o desastrado coro disco-funk de uma nova versão para a antiga “Na Hora do Almoço” (a terceira em sete anos) ou “Como se Fosse Pecado”. Sinal a mais de um Belchior iracundo, nessa última, quase toda conduzida por músicos norte-americanos, o efeito discothèque tinha de conviver com versos concretistas (“batuco um canto concreto pra balançar o coreto”) e diversas citações textuais ao cancioneiro brasileiro de Geraldo Pereira, Herivelto Martins e Marino Pinto, Jorge Ben, Ednardo – mas também aos Beatles.

Se até aqui tudo parecia a vontade meio desastrada de fazer de Belchior um John Travolta tropical, havia também a exposição frontal da política do corpo. Começava por “Sensual”, em que Belchior soava suave como nunca anteriormente, numa letra que parecia querer conquistar o público feminino suscetível à imagem do amante latino que ele já forjara. E encontrava ponto principal em “Bel-Prazer”, mais um inventário belchioriano da canção brasileira, com citações a “Irene” (de Caetano), “Soy Loco por Ti, América” (de Gil e Capinan), “Luar do Sertão” (de Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco) e outras. O pressuposto estava em “achar (ou inventar) um lugar/ tão humano como o corpo/ onde pensar e gozar seja tão livre e legal/ como as razões de Estado”, e o último bloco parecia querer fazer um inventário do Brasil a partir do tropicalismo: “Entrar ou sair da escola/ mulher/homem/homem/mulher/ como luar no sertão/ como lua artificial/ como roupas comuns/ como bandeiras agitadas/ festival estranho festa/ feriado nacional”. Eis aí o dilema: o novo que tanto buscava o quase-novo Belchior se materializara em disco music, política do corpo e hedonismo cocainado. O artista tentava aderir aos novos preceitos, mas tão intoxicado como sempre pelos hálitos tropicalistas. Homem de meia-geração, primeiro ficara correndo para alcançar a geração imediatamente passada, sabendo que nunca teria sucesso nesse intento. Agora, dava de cara com a nova geração, e ela era muito bem representada pela futilidade adrenalinada das Frenéticas, pela ausência quase completa de tutano dentro das canções. Belchior não pertencia a nenhuma das duas pontas, e o que sempre temera estava acontecendo: era novo demais para os velhos, velho demais para os novos. Era o carneiro do sacrifício da meia-geração, como seriam também muitos dos seus, como Fagner, Zé Ramalho, Ednardo e Geraldo Azevedo. A história seria inclemente para com todos eles.

Em seu caso, a perdição à espreita era a guinada tão forte a que era forçado, de pular de uma poética bravia e muito planejada ao vazio conceitual da discothèque. A impossibilidade desse salto chamava-se Todos os Sentidos, que então escondia envergonhadamente os valores bem belchiorianos que possuía. Tal era a canção “Divina Comédia Humana”, uma reflexão intimista (e espanholada no arranjo, e presenteada com citação a poema do parnasiano Olavo Bilac) sobre a incapacidade de amar de narrador que choramingava, algo incrédulo, entre confissões de lençol: “Aí um analista amigo meu/ disse que desse jeito não vou ser feliz direito/ porque o amor é uma coisa mais profunda/ que um encontro casual”. Tal era, principalmente, a perigosa “Brincando com a Vida”, em que se entregava o narrador: “Vida, eu não aceito, não, a tua paz/ porque meu coração é delinquente juvenil/ suicida, sensível demais/ vida, minha adolescente companheira,/ a vertigem, o abismo me atrai:/ é esta a minha brincadeira/ eu estou sempre em perigo/ o dia D, a hora H, o bang, o click do gatilho”. Da ponta do ser de sombra que se refestela pelos encontros sexuais causais à do suicida que precisa da sensação do perigo para viver, era o anti-romântico em desespero quem estava em ação. Ou talvez fosse o romântico propriamente dito, mas em estágio de dizimada auto-estima. Era, de todo modo contra-exemplo do romantismo de Roberto Carlos, embora talvez fossem muito parecidos afinal.

A crítica detestou Todos os Sentidos.

Era uma Vez um Homem e Seu Tempo, 1979, BelchiorMas o que importava era que o próprio Belchior não se sentia bem dentro da nova-velha roupa colorida da discothèque, e se esforçou por despi-la momentos depois. A alternativa, após tal decisão, era mesmo ficar nu, e de sua nudez nascia mais um disco, ‘Era uma Vez um Homem e o Seu Tempo’ (1979), o derradeiro trabalho da única fase de franco sucesso de sua história. Expulsando para longe qualquer resquício de disco music, aqui Belchior enquadrou mais o arranjador Robson Jorge (parceiro constante de Lincoln Olivetti) do que foi enquadrado por ele. Saiu de banda a ideia artificial de fazer de Belchior um hedonista homem de danças, e voltou à toda a velha e opressiva melancolia. Não se perdeu o sucesso por causa disso, pois havia o romantismo agalopado de “Medo de Avião” (“foi por medo de avião/ que eu segurei pela primeira vez a tua mão”). E não, não estava à vista um novo romântico à moda de Roberto Carlos: a própria “Medo de Avião” tinha uma segunda versão no disco, mostrando o outro lado da moeda. Se a primeira iniciava o álbum em ambiente idílico, a segunda exibia a face sexual da moeda romântica – e eis a política do corpo de volta – com referências a uma relação sexual a bordo e aos “grandes lábios” da musa. Nessa segunda versão, aparecia inesperado crédito de parceria a Gilberto Gil, amado inimigo tropicalista que se utilizava de habitual generosidade para se unir ao discípulo iracundo por breves instantes (e, não custa lembrar, Gil era o maior nome MPB da fase de implantação da Warner de André Midani).

Também havia em “Medo de Avião” a habitual citação aos Beatles, na ligação da mão segurada nos altos ares com “I wanna hold your hand”, e também em trecho musical de “She Loves You” (1963). Nesse disco, a obsessão de Belchior pelos Beatles era levada ao ponto máximo: “Brasileiramente linda” [12] citava “Here Comes the Sun” (1969) e “Comentário a Respeito de John” não só se remetia diretamente a Lennon (e a Yoko Ono, transformada em “oh, no”) como girava em torno do mote da canção beatle “Happiness Is a Warm Gun” (1968). Belchior se desprendera de vez da frivolidade das Frenéticas, mas em compensação cedia amplamente ao puro saudosismo de quem parecia não aceitar o desmembramento dos Beatles, nove anos antes.

A metralhadora citatória de glórias passadas também vinha encorpada, fosse nas menções a poetas brasileiros de “Retórica Sentimental” (em que sobrava também para os “tristes trópicos” do antropólogo Claude Lévi-Strauss), fosse nas referências à linhagem de utopia latino-americana de Milton Nascimento, Ney Matogrosso, Gonzaguinha e ele próprio, em “Voz da América”. O melhor desses momentos no álbum se dava nas duas parcerias de Belchior com o sessentista Toquinho, “Pequeno Perfil de um Cidadão Comum” e “Meu Cordial Brasileiro”. A primeira era uma bela e tristíssima canção banal sobre um rapaz que “era feito aquela gente honesta, boa e comovida/ que caminha para a morte pensando em vencer na vida”. Evidentemente o rapaz acabava carregado para a morte precoce, “feito um pacote”, consumando a referência cruzada à crônica tropicalista “Ele Falava Nisso Todo Dia” (Gilberto Gil, 1968) e à crônica antitropicalista “Construção” (Chico Buarque, 1971). A segunda citava e invertia citações cruzadas de MPB, do Roberto Carlos de “É Proibido Fumar” (“menina, ainda tenho um cigarro, mas eu posso lhe dar”), de 1964, e de “O Show Já Terminou” (“menina, o show já começou, é bom não se atrasar”), do Jorge Ben de “Porque é proibido pisar na grama” (“a grama está sempre verde, mas eu quero pisar”), de 1974, do Luiz Gonzaga de sempre (“asa branca, assum preto, sertão não virou mar”). De novo ao Roberto de “É Proibido Fumar” e agora também ao Caetano Veloso de “É Proibido Proibir”, concluía: “Menina, é proibida a entrada, mas eu quero falar/ com/contra quem me dá duro/ com o dedo na cara/ me mandando calar/ que o pecado nativo é simplesmente estar vivo/ é querer respirar/ ar”. Antes revoltado com seus antecessores por sua mera existência, o narrador agora somava à revolta a convicção de que aquela nata de heróis endinheirados proibia a passagem de quem vinha atrás, patrulhava, reprimia, sabotava, sufocava [13]. Em parte, estava transferindo ao próximo suas próprias responsabilidades; em parte, isso acontecia realmente, e era ele quem não conseguia se defender a contento. Sua defesa era o ataque, e o ataque era o mais feio dos pecados no Brasil censorial na beirada da anistia.

Atacava frontalmente por intermédio de “Conheço o Meu Lugar”, canção em que começava a denunciar com mais vigor e objetividade a humilhação e a ofensa de que se julgava vítima como nordestino e que, sabia, eram moeda corrente de qualquer nordestino ou outro marginalizado qualquer na vida animal das megalópoles do sul. A pancada: “O que é que eu posso fazer, um simples cantor das coisas do porão?/ Deus fez os cães da rua pra morder vocês/ que sob a luz da lua os tratam como gente – é claro –, aos pontapés”. A vingança: “Ninguém é gente!/ Nordeste é uma ficção!/ Nordeste nunca houve!/ Não, eu não sou do lugar dos esquecidos!/ Não sou da nação dos condenados!/ Não sou do sertão dos ofendidos!/ Você sabe bem:/ conheço o meu lugar”. Obviamente não se tratava de negar seu Nordeste natal, mas sim o inverso, reivindicar a integridade e a igualdade aos oprimidos, de que ele se julgava representante plantado no solo árido da música popular. Poucos ouviriam seu grito, que no Brasil era preciso gritar baixinho (como fazia Roberto Carlos).

De meio termo entre o ressentimento trazido de fora para dentro e a mágoa criada de dentro para fora, havia “Tudo Outra Vez”, uma reflexão cruenta sobre os anos passados pelo retirante nordestino na metrópole sulista. Clamando ainda por “viver coisas novas”, o narrador mais uma vez fazia o inverso do que pedia e apelava ao passado, considerando-se “sentado à beira do caminho pra pedir carona”. Havia alguma novidade ali, de fato: a imagem que mais lhe convinha naquele momento era a daquele Erasmo Carlos de 1969, perdido entre a perplexidade pelo advento da tropicália e a incredulidade pelo abandono do guia Roberto Carlos à jovem guarda. Após discos de receptividade popular e intenso bombardeio crítico, o narrador de Belchior sentia-se sozinho, em pleno abandono, à beira do caminho. Atirara bombas e críticas a esmo, sob a forte crença no bem que elas produziriam; paralisava-se agora diante das baterias antiaéreas que vira se voltarem contra sua própria artilharia. Sentia-se impotente na guerra que ele mesmo quisera (e devera) provocar. Sucumbia pela falta de apoio interno, ao mesmo tempo em que afirmava só contar consigo próprio (“saia do meu caminho/ eu prefiro andar sozinho”, chorava no lindamente desesperado blues-country-folk “Comentário a Respeito de John”). Dizia o que pensava, pensava o que dizia e sentia o contrário do que dizia sentir. Era um descompasso em forma de bigodão e sorriso plácido. De novo contumaz, estava assinando nova sentença de exílio e testamento, desta vez talvez duradoura como a própria vida.

 

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Objeto Direto, 1980, BelchiorA incompreensão interna e, especialmente, externa decretou uma sina descendente daí por diante. O “cantor das coisas do porão” seria cada vez mais aquilo mesmo que propusera naquele verso de “Conheço o Meu Lugar”. O primeiro passo para isso foi o depressivo Objeto Direto (1980), seu quarto disco para a Warner (ou melhor, o primeiro para o selo Elektra, do mesmo conglomerado WEA). Na capa, Belchior acendia um cachimbo (qual o romântico Roberto Carlos de 1975), em foto redonda em preto-e-branco sobre capa de branco profundo (qual o Caetano de Muito – Dentro da Estrela Azulada, de 1978). Nos sons, nada que pudesse se transformar em sucesso de rádio, nem sua extemporânea versão de co-autor para a antiga “Mucuripe” (histórica parceria fundadora Fagner-Belchior que Elis apresentou em 1972 e Roberto regravou em 1975), cantada com premeditada má-vontade. Secundado por uma equipe neutra de músicos, Objeto Direto era totalmente anticomercial, era Belchior feito objeto indireto. Mas, combalido pela relação instável com o sucesso, com sua classe e com a mídia, Belchior não soube naquele momento conciliar anticomercialismo e consistência poética e musical. Parecia girar em torno de temas vagos, sem saber ao certo o que queria dizer naquela difícil aurora dos anos yuppies da década de 80.

Viajava entre a política de corpo de objeto sexual e um forte conflito de identidade na canção-título, o libelo antinuclear em “Peças e Sinais” e “Cuidar do Homem” (influenciadas pelo pacifismo de Roberto Carlos, mas por vias que passavam antes por Zé Ramalho), os malabarismos concretistas inficazes, “sem metas” (como dizia a própria canção), na bela “Ypê”, a trip longuíssima e muito arrastada em companhia dos conterrâneos Fagner e Fausto Nilo da fúnebre “Aguapé” [14], o antigo inconformismo pela sensação de opressão em “Seixo Rolado” (que afirmava, grave, que “ser tão humilhado é sinal de que o diabo é que amassa o meu pão”) e, em várias canções, nova saraivada de citação aos poetas prediletos, Carlos Drummond de Andrade, Castro Alves e Oswald de Andrade à frente. À liquidificação da linhagem musical brasileira era reservada a “Depois das Seis”, com menções cruzadas a Noel Rosa, Lamartine Babo, Caetano Veloso, Chico Buarque. A questão nuclear do autor era posta em quatro palavras, “a culpa é tua”, maneira atormentada e enviesada de dizer “a culpa (não) é minha”. Belchior estava nessa forquilha. Ele e toda a geração “Nordeste agreste” que florescera devagarinho ao decorrer dos anos 70 estavam numa encruzilhada. Ele, Ednardo, Fagner e Zé Ramalho haviam chegado agressivamente, cônscios de sua estatura e de sua missão. Ao contrário da geração dourada de 1968, no entanto, encontraram a porta totalmente trancada, e não prestes a se trancar como daquela vez. Não é que não havia lugar à mesa do almoço da grande família. Não havia mais almoço, não havia sequer família. E Belchior recrudescia à condição de órfão, de filho abandonado por pais inexistentes. E perdia o prumo.

Paraíso, 1982, BelchiorEm busca de redenção, batizou o disco seguinte, dois anos depois, de Paraíso, com subtítulo frontalmente dedicado a contradizer Roberto Carlos: …E Que Tudo o Mais Vá para o Céu. Iniciava-o com “…E Que Tudo o Mais Vá para o Céu” tentando transmitir alegria, entusiasmo, vibração – tentando, pois, espantar a depressão de Objeto Direto. Para isso, utilizava-se de músicos do grupo baiano A Cor do Som (que era então um dos quindins da gravadora WEA), como acontecia de resto em todo o disco. Tal opção conferia a Paraíso uma feição de pop, reggae e new wave abrasileirado, com namoros ao trio elétrico, ao new age e ao kitsch em vários momentos. O moto de exorcismo aparecia também textualmente em “…E Que Tudo o Mais Vá para o Céu”, composta em parceria com o ex-inimigo tropicalista Jorge Mautner: “Vai embora, poeta maldito!/ o teu tempo maldito também já terminou!”. Para exorcizar a maldição é que chamava ao avesso por Roberto Carlos, sacralizando o antigo clamor ao demônio do artista mais popular do Brasil: “E à noite eu entro num cinemascope/ technicolor/panavision/ daqueles de caubói/ de que vale a minha boa vida de playboy?/ e eu compro esse ópio barato/ por duas gâmbias, pouco mais, mas como dói/ se eu entro num estádio e a solidão me rói/ e eu quero é mandar para o alto/ o que eles pensam em mandar para o beleléu/ …e que tudo o mais vá para o céu”. O desejo de redenção era, como de hábito em Belchior, forrado de contradição. Se para aquele narrador cinema era ópio barato, ele queria dizer também que o pop romântico de Roberto era barato, e a agressão ao ídolo era mais explícita na citação alterada ao verso “se entro no meu carro e a solidão me dói” – o “dói” era trocado por “rói”, bem mais cruel, e o “carro” virava “estádio”, em relação ao estrelato de arena de Roberto Carlos, que alguém magoado como Belchior considerava algo de extrema solidão. Talvez fosse mesmo, mas acusar isso não encolhia a imensa solidão do próprio narrador sequioso por redenção.

O discurso era confuso, e ficava ainda mais após aderidas referências à “asa da graúna” do condoreiro Castro Alves e ao plantão underground versão anos 80, que florescera na cidade de São Paulo a partir da virada da década. Belchior já citara o não-canto áspero de Arrigo Barnabé no disco anterior (na faixa “Cuidar do Homem”), e agora o “o que eles pensam em mandar para o beleléu” remetia a Itamar Assumpção, que eclodira para a música experimental e intricada em 1980 com o personagem-alter ego Beleléu. Ainda pesquisando esse universo emergente, Belchior gravava duas músicas do repertório da Banda Performática, do artista plástico Aguilar. Uma delas, “Estranheleza”, era composição de Arnaldo Antunes, então pertencente à trupe Aguilar e Banda Performática (cujo único LP, de 1982, foi produzido por Belchior), futuro vocalista dos Titãs e futuro músico “popcreto” . A outra, o reggae mântrico “Ma”, era de Arnaldo com Aguilar e Nuno Ramos, também artista plástico. De resto, a pena poética de Belchior parecia intimidada em Paraíso, pois ele se dedicava a interpretar vários outros compositores, como Guilherme Arantes (num desastrado reggae tropical, “A Cor do Cacau”, lançado pelo autor em 1979), Sérgio Kaffa e Cézar de Mercês (ex-membros d’O Terço) e Ednardo Nunes (que era cearense, mas não era o Ednardo de “Pavão Mysteriozo”).

Quando falava de voz própria, só na sarcástica “Monólogo das Grandezas do Brasil” manteve intactas suas características melancólicas de sempre, colocando-se explicitamente na carne de um migrante nordestino pobre e oprimido para falar, de novo, de gente “humilhada e ofendida pelas grandezas do Brasil”. A conclusão continha puros sangue, suor, lágrimas e exaustão: “Como uma metrópole, o meu coração não pode parar/ mas também não pode sangrar eternamente”. De resto, Belchior tentava com constrangimento exalar um novo humor, escaldado que estava provavelmente das acusações de “chato”, “reclamão” etc. Disso surgiam choques culturais como o de “Do Mar, do Céu, do Campo”, em que referências às vanguardas de Marcel Duchamp e Alfred Jarry se diluíam em expressionistas sonoridades latinas. E surgia também “Paraíso”, que se pretendia um chamado à dança: “Dá-lhe, fale que só vale ser, dance comigo/ guarde o seu corpo na alegria e no (bom) HUMOR/ palavra tão amiga minha e, de si mesma, tão vizinha da palavra AMOR” [15]. De novo Belchior se fazia cavalo da WEA e daquela noção disseminada de que dançar era o que restava, fosse pelos passos passados da discothèque ou pela festança de reggaes, lambadas e carnavais d’A Cor do Som. Belchior não parecera vestido em sua própria roupa na depressão de Objeto Direto, mas menos ainda parecia agora, na alegria fantasiosa de Paraíso, que não era de sua natureza exteriorizar. Nada deu muito certo, e lá se foi ele embora da WEA de André Midani.

 

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Cenas do Próximo Capítulo, 1984, BelchiorPouco depois de amaldiçoar os poetas malditos e de pedir bênção sarcástica a Roberto Carlos, Belchior foi seguir a sina dos malditos: ficou sem gravadora e fundou seu próprio selo, Paraíso Discos, pelo qual lançou em 1984 o álbum Cenas do Próximo Capítulo, auxiliado de pouco pela distribuição da multinacional EMI-Odeon. No ano do Big Brother de George Orwell, era de se esperar que o título e a capa expondo um Belchior descabelado visto por uma tela de TV remetessem a uma iminente crítica ao másculo poder e aos abusos da grande mídia brasileira, mas não era isso que se ouvia em Cenas do Próximo Capítulo, um disco todo impregnado de sintetizadores bem oitentistas – Belchior tentava, como de resto a maioria dos artistas da era dos festivais, se adaptar à nova sonoridade do pop brsileiro, roqueira diluída e indecisa entre a new wave e a new age. Mas o chiste com telenovela se reduzia à graça de “Rock-Romance de um Robô Goliardo” encerrar o lado A do vinil como num programa de auditório, com longas narrações de um animador eletrônico entremeando a canção propriamente dita, para, em seguida, “Canção de Gesta de um Trovador Eletrônico” abrir o lado B voltando à mesma melodia e à mesma letra, agora em formato de rock convencional.

No mais, o que o disco significava, ainda que com canções predominantemente inéditas, era o primeiro grande inventário saudosista da carreira de Belchior. Veja só. A faixa de início encetava rápido caráter de manifesto: era uma regravação de “Ouro de Tolo” (1973), que selava a quebra final da desavença antiga com Raul Seixas. Tal desavença tinha muito menos relevância que a semelhança de discurso entre o que dizia a balada cafona do roqueiro baiano e o que sempre andou dizendo o poeta marginal cearense. O mau humor era o mesmo, o desencanto era o mesmo, até a experiência de fome nas ruas antes da fama fora a mesma. E Belchior afinal admitia de modo mais explícito mais esse seu mestre. Daí em diante, começava a citação desenfreada. “Ploft” retomava a utopia latino-americana, mencionando literalmente o livro As Veias Abertas da América Latina (1971), do historiador uruguaio Eduardo Galeano. Essa e as posteriores “Brotinho de Bambu” e “Rock-Romance de um Robô Goliardo” rabiscavam insistentes exercícios de poesia visual e concretista já esterilizada pelo excesso de uso e por certo vazio conceitual que ela agora ocultava. O tal “Rock-Romance”, junto com “Canção de Gesta de um Trovador Eletrônico”, fazia uso extensivo de recursos kitsch da eletrônica dos 80 para tecer declaração apaixonada e plenamente saudosista aos rock’n’roll dos 50 e 60. Apesar de citações cruzadas de tom contemporâneo (como “vamos dar um balanço cibernético nas horas”, que falava ao mesmo tempo do pioneiro “Rock Around the Clock” (1956) de Bill Haley e do novinho “Tudo Pode Mudar”, do grupo Metrô), o lance era memorabilia pura, com menções nominais a Chuck Berry, Bill Haley and His Comets e aos mártires Jim Morrison, Jimi Hendrix, John Lennon e Janis Joplin. O discurso roqueiro servia, principalmente, para Belchior voltar a suas obsessões cativas, vomitadas na enumeração de uma longa lista de marginalizados sociais e na interessantíssima narrativa do choque entre um jovem futuro roqueiro e sua mãe nordestina: “Ia pondo meu pé na rua quando a minha velha saltou de lá, muito cheia de si, me chamando playboy, rebelde, transviado, como se fosse dona do mundo. E foi logo dizendo: ‘Pra você ver a vida como é! A gente cria um bicho desses, educa, dá do bom e do melhor, casa e comida, roupa lavada, amor, carinho, mesada, e esse aventureiro termina deixando a escola, fugindo de casa, maldizendo a família, querendo ser cantor de roque!’”. Retomando frase-ícone do velho ídolo popular Waldick Soriano (“eu não sou cachorro, não/ pra viver tão humilhado”), reatava sua obra ao imaginário de Raul Seixas, querendo levar discurso explosivo às mais populares das plateias.

Lado B, continuava a saga revisionista. “O Negócio É o Seguinte” combinava menções a forró, sertão e o verso “não sou nenhum pai joão”, de “Sem Compromisso” (a canção de 1944 é de Nelson Trigueiro e Geraldo Pereira, mas sua constância no repertório do bossa-novista João Gilberto dava sentido duplo à citação de Belchior). “Beijo Molhado”, subtitulada “Tele-Canção de Novela Brasileira”, rememorava atabalhoadamente o “beijo molhado, escandalizado” de “Da Cor do Pecado” (1939, de Bororó, mas também frequente na voz de João Gilberto), as divas hollywoodianas de Belchior, “Only You” (1955), iê-iê-iê, discothèque, termos de canções antigas do próprio Belchior (“suja de batom”, “tomar um sorvete”), tudo junto e confuso. A canção mais triste do LP, “Onde Jaz Meu Coração”, usava banjo country e paródia do “Mr. Tambourine Man” (1965) de Bob Dylan para se remeter ao adorado Nordeste, na retórica bem conhecida de reivindicação da grandeza da região que ele chamava de “reino do abandono”, “um país de esquecidos, humilhados, ofendidos e sem direito ao porvir”. Essa canção continha, sem talvez nem ter o propósito, o momento de maior bom humor de toda a obra de Belchior, nos autocríticos, lúcidos e até comoventes versos “ah, minha voz, rara taquara rachada,/ vem, soul-blues, do pé da estrada/ e canta o que à vida convém/ vem, direitinha, da garganta desbocada/ mastigando in-nham, in-nham/ cheinha de nhenhenhém”. Estrofe cândida, lembrava, além do textual, que Belchior já não era mais assim tão desbocado. O cansaço criativo começava a assomar à fronte. E, para finalizar, Belchior voltava ao passado nordestino ainda mais que em Raul Seixas, dando versão tecnopop ao “Forró no Escuro” (1958) do patriarca Luiz Gonzaga. Estava aberta a temporada de saudosismo.

Um Show - 10 Anos de Sucesso, 1986, BelchiorEra ela, por exemplo, que permitia a contratação de Belchior pela gravadora Continental, para lançamento do periclitante Um Show – 10 Anos de Sucesso (1986), com versões supostamente ao vivo (mas sem aplausos do público e com toda cara de gravação de estúdio) e new wave dos sucessos fundadores e nenhuma faixa inédita. Esse em breve se tornaria um eterno retorno para Belchior, mas ainda não. Em 1987, voltou à velha Philips (agora rebatizada PolyGram, pela fusão dos selos Polydor e Phonogram) que vira seu sucesso nascer e lançou mais um álbum de inéditas, Melodrama.

Melodrama, 1987, BelchiorParecia a volta do artista a padrões de produção independentes de modismos new wave, como se ouvia na orquestra de dramalhão de “De Primeira Grandeza”, que abria o disco em pique carlista de elogio à paixão (Chiquinho de Moraes, velho colaborador de Roberto Carlos, era o arranjador dessa e de outras faixas), mas em pique anticarlista de discurso confuso de confusão dos sexos (presente também em outras canções do disco, como “Lua Zen”, dele com Gracco). Mas logo a impressão era relativizada, fosse no arranjo sintetizado de elevador para “Todo Sujo de Batom” (que Belchior gravava pela terceira vez), fosse no tratamento América Central, carnavalesco, pré-axé music, de “Bucaneira”.

O momento mais ferino do Melodrama, e também o de melhor resolução musical (inclusive pelo tom certeiro e incomum de delicadeza que Belchior dava à interpretação) era o de “Dandy”, um refluxo de sua velha crítica ao comportamento artístico deslumbrado, ao apego apenas mercadológico de grandes ídolos a discursos revolucionários, esquerdistas. Dizia ele: “Mamãe, quando eu crescer eu quero ser artista/ sucesso, grana e fama são o meu tesão/ entre os bárbaros da feira ser um mero conformista/ nem um supermercado satisfaz meu coração/ mamãe, quando eu crescer eu quero ser rebelde/ se conseguir licença do meu broto e do patrão/ um Gandhi dândi, um grande milionário socialista/ de carrão chego mais rápido à revolução”. Parecia uma crítica feita à distância, por quem se julgava fora daquela redoma, e a canção “Tocando por Música” (parceria com Jorge Mello) o confirmava fazendo o contraponto: “A minha alma esteve à venda/ como as outras do lugar/ só que ninguém me comprou/ pois só eu quis me pagar”. A confusão aumentava em “Dandy” pelos versos seguintes: “Ah, quanto rock dando toque, tanto blues/ e eu, de óculos escuros, vendo a vida e o mundo azul”. Era um emaranhado de referências cruzadas, ao “Rock do Diabo” (1975) de Raul Seixas e aos blues de Zé Ramalho e do próprio Belchior de um lado, e do outro ao “eu” narrativo e aos óculos escuros hedonistas do “Vampiro” do “inimigo” “maldito” Jorge Mautner, transformado em pop bissexual por Caetano Veloso [16]. O narrador dessa e daquela canção parecia estar num impasse, equidistante entre os dois extremos que se configuravam também dentro dos corpos das próprias canções: ressentia-se dos outros que não haviam permitido sua ascensão ao olimpo (o que tinha lá seu senso, mas apenas parcial), e se ressentia de si, por não se sentir comprado por ninguém (o que era um evidente exagero).

Tal estágio de confusão se reproduzia no blues “Jornal Blues (Canção Leve de Escárnio e Maldizer)” (de Belchior com Gracco), em que o narrador se debatia para contornar os sensos comuns que via desabar sobre ele, de que fosse um cara “durão” – e machão –, “kitsch”, “sempre adolescente”, representante eterno do não (“não toques este disco! não me beijes, por favor!”, implorava já ao final da letra quilométrica). “Eu talvez seja o cara que você ama odiar, inimigo do peito”, sintetizava, transtornando qualquer escárnio ou maldizer em autodefesa, em efeito rebote. Mais ou menos parecido com isso acontecia em “Os Derradeiros Moicanos”, sobre “uns pobres diabos sul-americanos” que se pretendem cultos (e citam abundantemente Duchamp, Picasso, “Rimbaudelaire”, Henri Salvador, Jacques Brel etc.) e forjam um exílio voluntário na França (e disparam a cantar versos em francês). Tal pobre-diabo era (ou julgava ser) o próprio narrador, que metaforizava assim o alto grau de confusão em que seu discurso se encontrava preso e o antigo sentimento de auto-exílio do migrante nordestino. A temática seria motivo dois anos depois amplificado com maior perspicácia e normatizado com maior nitidez por Caetano Veloso em “Estrangeiro”, uma corruptela a “Os Derradeiros Moicanos” gritada no alto-falante de que Belchior não podia ou não conseguia dispor. Pois, afinal, o disco Melodrama era sua volta a um sistema sofisticado de gravação, à companhia de uma equipe forte de músicos, à possibilidade de trânsito de seu trabalho. E Belchior parecia desconfortável diante dos instrumentos à mão, lidando com eles de modo às vezes desconexo, às vezes frouxo, às vezes morbidamente desanimado. Era o narrador de “Dandy”, que não queria pertencer ao meio ao qual queria pertencer – equação complicada, mas diametralmente diferente da de Roberto Carlos e Caetano Veloso, que sempre quiseram fervorosamente pertencer ao meio ao qual pertenciam. “Eu é que sou um cara difícil de domesticar”, resumia, desconsolado, em “Em Resposta a Carta de Fã” – sim, esse narrador dândi até carta de fã respondia, mesmo que sua resposta tivesse mais cara de bronca (essa, sim, bastante amplificada) que de resposta.

Elogio da Loucura, 1988, BelchiorNa sequência, aconteceria a amplificação da própria confusão, no radical Elogio da Loucura (1988, ainda PolyGram). Os termos se elevavam no trio de (fracas) canções lotadas de sintetizadores que abriam o lado B do LP e também na canção de encerramento, “Arte-Final”. Após um lado A ameno (que rendia no máximo os trocadilhos tristonhos de “Balada de Madame Frigidaire” e a citação recombinada e desesperada de versos de sua própria obra em “Recitanda”), começava o bombardeio por “Lira dos Vinte Anos” (título roubado de poema do romântico Álvares de Azevedo), uma intensificação do conflito identitário anterior: “Meu pai não aprova o que eu faço/ tampouco eu aprovo o filho que ele fez/ sem sangue nas veias, com nervos de aço/ rejeito o abraço que me dá por mês”. O narrador não estava falando apenas do ressentimento masculino habitual entre pai e filho biológicos, mas também de música popular brasileira, como denunciavam novos versos de crítica à acomodação dos totens de sua geração: “Os filhos de Bob Dylan/ clientes da Coca-Cola/ os que fugimos da escola/ voltamos todos pra casa/ um queria mandar brasa/ outro, ser pedra que rola/ daí o money entra em cena e arrasa/ e adeus, caras bons de bola!”. Refluxo evidente de “Como Nossos Pais”, a canção tinha um narrador que já se sentia pai, que se autocriticava como tal (pois não estava excluído do rol de robertos, erasmos e caetanos contadores de vil metal que denunciava), mas não perdia o hábito arraigado de reclamar dos pais – se o narrador amargurava seu próprio fracasso, ao menos a culpa não era dele, mas antes do pai artístico que o concebera – Bob Dylan, Mick Jagger, Caetano Veloso, Roberto Carlos e quem mais chegasse. Caía na própria armadilha – a crença ilusória de que o inferno são sempre os outros –, que era expressa na inadequação desanimada de arranjos e programações eletrônicas de sopro kitsch, vaporosos.

Em seguida vinha “Os Profissionais”, crítica contumaz à geração yuppie que deitara e rolara e se esbaldara nos anos 80. “Onde anda o tipo afoito/ que em 1-9-6-8/ queria tomar o poder?/ hoje, rei da vaselina,/ correu de carrão pra China/ só toma mesmo aspirina/ e já não quer nem saber”, metralhava, tentando compor uma chanson francesa de acordeom alvejada por mais versos em francês. O tiro saía pela culatra: a estruturação musical da canção fazia lembrar da proto-sertaneja e ultra-kitsch “Caminhoneiro” (1984), de Roberto Carlos (o que talvez até fosse uma outra crítica mais ou menos sutil, mas remetia de novo a profundo conflito de identidade). O próprio narrador entregava os pontos, afirmando que “dancei no pó dessa estrada”, descuplando-se/confessando-se que “perdão, que perdi o pique” e concebendo a mais grandiosa constatação de um artista brasileiro de sua faixa etária, que outros de sua geração (ou de quaisquer outras) sempre deram uma fortuna para ocultar diligentemente: “Muito jovem pra morrer/ e velho pro rock’n’roll”. Estava ali exposto e sangrando o conflito de qualquer artista maduro de música pop, e mais particular e significativamente o do próprio Belchior: envelhecer, naquela profissão, seria algo doloroso à beça. Se enroscados pela mitologia assassina de juventude eterna da música pop, ídolos do rock se arriscavam a consumar sua maturidade num longo buraco negro entre a “aposentadoria” e a morte. A maturidade era idade de acesso vetado a eles – e era contra essa ideia que Belchior se debatia freneticamente, expondo com valentia incomum as chagas descarnadas.

O terceiro momento era “Kitsch Metropolitanus” (parceria com Jorge Mello), daquelas canções de encontrar falso alívio na culpabilização retroativa do próximo. “Que gente fina, gentinha,/ rainha em puxar tapete/ não posso entrar numa sala/ que eles vêm de cassetete/ kitsch metropolitanus/ essa moçada promete/ garotos, clones, mutantes/ com que gastar meu confete?”, cantava em reggae barato, dirigindo-se à nata ascendente da geração yuppie, que tachava de “comedor de hambúrguer”, “mascador de chiclete” e ”beberrão de keep cooler”. Ele, que sempre clamara pelo novo, enxergava os novos roqueiros dos 80 como meros clones arrivistas. Confuso, deixava o cuspe cair na testa, ele próprio um trovador eletrônico perdido entre os clichês do reggae, da new wave e da new age.

“Arte-Final”, procurando concluir a turbulência de Elogio da Loucura, voltava à crítica enfezada aos jovens yuppies (mas, aos mesmo tempo, aos senhores acomodados de sua geração): “Donde están los estudiantes?/ os rapazes latino-americanos?/ os aventureiros, os anarquistas, os artistas,/ os sem-destino, os rebeldes experimentadores,/ os benditos malditos, os renegados, os sonhadores?/ esperávamos os alquimistas, e lá vêm os arrivistas, consumistas, mercadores”. Totalmente na contracorrente dos despolitizados anos 80-90, Belchior se colocava uma vez mais em posição de isolamento, de nobre que atira pérolas aos porcos sem que os porcos percebam sequer sua presença. Sem medo de palavras inteiras, reconhecia, bravateiro e ineficaz: “Dancei, sei que dancei, dancei, meu bem/ mas vem que ainda tem!”. Apelava ao eterno retorno, de palavras tais como as primeiras que o artista Belchior proferira muitos anos antes: “Sessão de nostalgia, isso é lá com minha tia/ alô, presente, estou chegando! alô, futuro, já vou!”. Em breve o artista teria que morder as próprias sílabas. Estava em curso uma ampla, geral e quase irrestrita sessão nostalgia.

 

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Pessoal do Ceara, 2002, Ednardo, Amelinha e BelchiorÉ que já em 1990 Belchior iniciaria um profundo e vicioso processo de auto-revisão e de repetição e regravação contínua das glórias passadas, quase sempre assentadas naquele esqueleto “A Palo Seco”/“Como Nossos Pais”/“Apenas um Rapaz Latino-Americano”/“Paralelas”/“Medo de Avião”/outras poucas. Desse modo foram concebidos, passo por passo, os discos de reminiscências Trilhas Sonoras (ao vivo, Continental, 1990), Contradança – Acústico (Paraíso Discos, 1991) [17], Eldorado (Movieplay, 1993) [18], Acústico – Um Concerto Bárbaro (PolyGram, 1995), 25 Anos de Sonho, de Sangue e de América do Sul (Camerati – gravadora independente de que Belchior foi um dos donos –, 1996), Antologia Lírica (Camerati, 1999), Auto-Retrato (BMG, 1999) e Pessoal do Ceará (Continental, 2002), este último gravado em companhia de os Ednardo e Amelinha, com apenas duas músicas inéditas entre sucessos antigos dos três artistas cearenses [19].

Auto-Retrato, 1999, BelchiorTambém retrospectivo, mas de tez diferente, foi o álbum Vício Elegante (GPA, 1996), dedicado a releituras de não-sucessos de Chico Buarque, Caetano Veloso [20], Roberto e Erasmo [21], Zé Ramalho, Adriana Calcanhotto, Marina Lima e do ídolo cafona-romântico Márcio Greyck (em “Aparências”, chororô pessimista de 1981 composto por Cury e Ed Wilson), entre outros vários. Entre nove discos de autofagocitose concebidos em 12 anos, uns poucos se auto-autorizavam, fosse pela extrema delicadeza de arranjos e releituras (25 Anos de Sonho, de Sangue e de América do Sul) ou pela relevância do projeto (o álbum de reencontro conterrâneo melancólico – e primeiro encontro discográfico – com Ednardo e Amelinha). Audaz mesmo, embora malsucedido, foi Auto-Retrato. A multinacional BMG (ex-RCA Victor) se interessara por lançar uma antologia acústica em álbum duplo de Belchior, a exemplo do que fizera dois anos antes, com pleno sucesso, com Zé Ramalho, e repetira na sequência com Geraldo Azevedo e Fagner. Belchior aceitou, mas apenas em parte – seu espírito de ovelha negra não aceitaria assim tão facilmente a fórmula do sucesso que a gravadora pensava haver encontrado. Produzido por Ruriá Duprat (sobrinho do maestro tropicalista Rogério Duprat) e secundado por fortíssimo time de músicos de São Paulo, Belchior preferiu avançar corajosamente pelo novo, elegendo pitadas de sonoridades noventistas de drum’n’bass, trip hop, canto-fala de rap (“Na Hora do Almoço”), scratches de hip hop e novas fusões nordestinas para salpicar a desconstrução de mais uma bateria de regravações de sua fortuna artística. Entre faixas mais “modernas”, bem pontudas (“Alucinação” era o mais potente exemplo), outras apelavam para o jazz ou para elaboradíssimos arranjos de piano ou de violinos. O novo e o velho convivendo como nunca no mesmo sujeito, foi só mais um lampejo do aparentemente indestrutível conflito belchioriano, consumado no arranjo pós-moderno da canção final, a brava “500 Anos de Quê?” (recolhida de Bahiuno, disco de que se vai falar adiante). Algo mais revalidava tal conflito: projetos revisionistas como acústicos, discos ao vivo, encontros musicais e projetos de releituras de outros compositores se tornaram verdadeira coqueluche comercial no Brasil da segunda metade dos anos 90 em diante, forrando os bolsos de dezenas de artistas que antes vinham em processo de derrocada particular (que por sua vez acompanhava a derrocada mais geral da MPB como um todo); os de Belchior, precursores, devem ter engordado também seus bolsos, mas nunca chegaram a se tornar fenômenos de massa ou recordistas de vendagem. Esses méritos ficaram para os volumes da série Acústico MTV de Roberto Carlos, Gilberto Gil, Rita Lee, os oitentistas Titãs e Paralamas do Sucesso etc. Belchior, não – preferiu o experimentalismo. Talvez pela primeira vez teve uma ideologia musical firme por trás de si (cortesia da família Duprat), mas o belo disco passou desapercebido. Alguma coisa muito nova não estava por acontecer.

Baihuno, 1993, BelchiorComo nota e adendo: em Belchior, o hábito revisionista só foi em parte quebrado, de 1988 em diante, pelo CD independente Bahiuno (Movieplay, 1993). Delicado exercício de análise sobre o que tem sido a história do Brasil, constituía-se de vários “movimentos”, por que iam passando em flashes a América e o Brasil pré-descobrimento, a vida interiorana, a migração e o desejo de volta, os párias sociais todos, desilusões amorosas e artísticas… Também havia espaço para regravações, mas dessa vez Belchior escolhia temas seus que não haviam sido assimilados, de discos obscuros como Cenas do Próximo Capítulo (“Onde Jaz Meu Coração”, aquela do “reino do abandono” nordestino, ou “S.A.”, na verdade um trecho do “Rock-Romance de um Robô Goliardo”) e Elogio da Loucura (a frígida “Elegia Obscena”, a crepuscular “Arte-Final”).

A reanálise de si aparecia em canções novas, como a eloquente faixa-título (seu dono não era baiano, como Dorival, João, Caetano e Gil, mas antes “bahiuno”), de um eu-lírico que se indispunha ainda uma vez com sua família sanguínea e com sua família musical: “Fora-da-lei, procurado, me convém família unida contra quem me rebelar”. Adiante, emitia avaliação sobre si que pretendia fazer definitiva a vida errática do moço e do cantor: “Ao pastor da minha igreja reza que esta ovelha negra jamais vai ficar branquinha/ não vendi a alma ao diabo, o diabo viu mau negócio nisso de comprar a minha/ se meu pai, se minha mãe se perguntarem, sem jeito, ‘onde foi que a gente errou?’/ elogiando a loucura, e pondo-me entre os sonhadores, diz que o show já começou”. Lá na frente, em “Ondas Tropicais”, o bardo desiludido voltava à toda, tomando para si e sua natureza a exclusão de que se via vitimado no tecido MPB: “Na província Hollywood/ eu era um brando farsante”. Bahiuno era um narrador que já não cria em si, a elaboração madura do pária que se autodenunciara desde o primeiro instante.

Mas eram “Amor e Crime”, “Balada do Amor Perverso” e “Se Você Tivesse Aparecido” (e também, de volta, “Elegia Obscena”) que retomavam a verdadeira e quase sempre esquecida epopeia belchioriana. Baladas de suspeição sobre o amor, traziam à tona morna a desdita e a descrença em tal sentimento. “Amor e Crime” disparava: “Amor, não há amor,/ existem só provas de amor/ mas, no amor,/ provas não bastam/ tudo mentira/ tudo cinema/ apenas cenas”. “Balada do Amor Perverso” reforçava: “Não quero amar, não, nunca mais/ que esse negócio de amor/ já não se faz sem punhais”. E “Se Você Tivesse Aparecido”, afinal: “Se você tivesse aparecido/ esta droga de existência/ se mudaria em viver”. Os últimos versos dessa mesma canção (“pegar carona nesta decadência é o fim/ como pôde acontecer?”) poderiam denotar um narrador maduro que olha sua vida para trás e só encontra desencanto. Mas esse era, afinal, o mesmo narrador assaltado que dizia desde “Como Nossos Pais”, ainda bem jovem, a frase-símbolo “não quero lhe falar, meu grande amor…”. Não importava que palavras completariam aquela frase – elas desvelavam não um vácuo na capacidade de amar, mas antes a incapacidade de lidar com a palavra, com o tema, com o sentimento. Porta-voz do “não”, Belchior andara a vida toda dizendo “não” também ao amor, mesmo quando dizia que não estava dizendo. Andara estrada afora apontando dedos e versando sobre a política, sobre a cultura, tantas vezes por pudor de falar simplesmente de amor. Seu narrador predileto vivia acometido desse pudor contínuo, como aquele da velha “Divina Comédia Humana”, aquela em que reclamara de um analista amigo que criticara sua pouca propensão ao amor – ali, o encarte do disco de 1978 transcrevera os versos “eu quero é ficar colado à pele dela noite e dia/ fazendo amor e de novo dizendo/ sim à paixão/ morando na filosofia”, mas não era o que o cantor cantava. Em suas várias versões, “Divina Comédia Humana” sempre teve esse trecho proferido com desconforto, com rapidez e, mais, trocando “fazendo amor” por “fazendo tudo”. Belchior era então, e para sempre seria, o cantor profundamente romântico que não sabia falar de amor. Estava no lado oposto do ringue com Roberto Carlos, o cantor profundamente romântico que só sabia falar de amor. Linhas paralelas, seguiram retas sem retoques, à espera de se encontrarem, quem sabe, no infinito.

 

[1] Em Milton, Odeon, 1970.

[2] “Pavão mysteriozo” virou sucesso nacional, mas só dois anos depois, quando o dramaturgo Dias Gomes a colocou na posição de tema de abertura da telenovela global Saramandaia, realismo fantástico protagonizado por Juca de Oliveira como um homem que de repente descobria asas nascendo em suas costas.

[3] Sua gravação saiu em 1975, mas só se tornou sucesso de massa mais tarde, com a inclusão da faixa na trilha da novela global Duas vidas (1976-77), de Janete Clair. Vanusa ainda gravaria, de Belchior, “Brincando com a Vida” (1977) e “Espacial” (1979). Seu então marido, o ídolo romântico pós-iê-iê-iê Antonio Marcos, gravou “Todo Sujo de Batom” e a utópica “Voz da América”, ambas em 1976. “Voz da América” receberia versões em pique popular de Maria Alcina (1979) e Jessé (1981).

[4] Em regravação de 1986 dessa canção, Belchior apôs aos “seus metais” (ele não cantava “vis”, como Elis) o cantarolar “iê iê iê iê…”.

[5] Note, de novo, a obsessão geracional.

[6] Jornal do Brasil, 8 de agosto de 1976. Na mesma entrevista afirmava, em tom igualmente provocativo: “Eu não sou do tempo da bossa nova, sou do tempo do rock”.

[7] Folha de São Paulo, 30 de agosto de 1977.

[8] O parêntesis e a interrogação dúbios não eram evidentes no canto, mas constavam do encarte.

[9] Em “Apenas um Rapaz-Latino Americano”, Belchior pedia: “Por favor, não saque a arma/ no saloon eu sou apenas o cantor”.

[10] Jornal do Brasil, 30 de agosto de 1978.

[11] Folha de São Paulo, 27 de agosto de 1978.

[12] No encarte do disco, a letra dessa canção era disposta em forma de poema gráfico, retomando tática concretista abandonada desde o primeiro disco.

[13] Àquela altura, até o colega paraibano de geração Zé Ramalho se fartara de ouvir Belchior reclamando o advento do novo, e desferia sutilmente em “Falas do Povo” (em A Peleja do Diabo com o Dono do Céu, Epic/CBS, 1979): “Falo da vida do povo/ nada de velho ou de novo”. Por trás de tais versos soava o violino de Jorge Mautner, que fora a público defender os tropicalistas contra as “barbaridades” que Belchior vinha lhes desferindo.

[14] Um canto gregoriano era ouvido ao fundo dessa canção, reminiscência dos tempos de seminarista de Belchior.

[15] Os parênteses e as maísculas eram usados na transcrição da letra no encarte.

[16] Em gravação de Cinema Transcendental, Philips, 1979.

[17] Contradança foi lançado em CD pela Movieplay, sob o nome A Divina Comédia Humana. Há apenas uma música de diferença entre os dois discos, nos quais Belchior refaz seus sucessos acompanhado apenas pela dupla de violonistas Duofel (Fernando Melo e Luiz Bueno).

[18] Dividido com o duo tradicional uruguaio Larbanois-Carrero, esse disco merece o registro de materializar a sonhada união utópica da América Latina – nele, Eduardo Larbanois e Mario Carrero se dedicam exclusivamente a verter canções de Belchior para o castelhano.

[19] Fagner foi excluído por desacordos pessoais entre o grupo. Rodger e Tetty, do “Pessoal do Ceará” originário, estavam distantes da música popular em 2002.

[20] A obscura e anódina “O Nome da Cidade”, lançada por Maria Bethânia em A Beira e o Mar (PolyGram, 1984).

[21] A obscura “O Tolo”, extraída do disco de 1989 de Roberto Carlos.

 

(*) Faço esta chorosa publicação pensando em Antonio Rogério Toscano. Em Eduardo Nunomura. Em Jotabê Medeiros (muito trabalho pela frente, meu irmão!). Em Dilma Rousseff Luiz Inácio Lula da Silva (que em 29 de abril de 2017 foram conterrâneos gaúchos da morte de Belchior). Em Getulio VargasJoão Goulart Leonel Brizola (que também). Em Haroldo Ceravolo Sereza. Em Ivana Jinkings. Em Jorge Mello. Em Manuela Carta Mino Carta. Em minhas irmãs briguentas Lilian Myriam.

“Não perdoo os músicos que têm a musicalidade e não exploram”

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Hermeto no dia em que completa 81 anos, 22 de junho de 2017 - Foto Filipe Vianna

Hermeto no dia em que completa 81 anos, 22 de junho de 2017 – Foto Filipe Vianna

A música popular brasileira nem sempre acredita em seus bruxos, mas que os há, os há. Na manhã do dia em que completava 81 anos, 22 de junho de 2017, o multimúsico alagoano de vocação universal Hermeto Pascoal recebeu FAROFAFÁ CartaCapital para uma conversa estimulante que não chegou a durar 60 minutos, mas reuniu conceito e informação suficientes para condensar uma eternidade. Seguem a transcrição integral da entrevista e a edição em vídeo por Filipe Vianna.

Jotabê Medeiros: Você conheceu alguns músicos albinos pelo mundo afora?

HP: Sivuca, né?

JM: Johnny Winter? Aqueles Winters americanos?

HP: Não, nenhum. Eu conheci morando em Curitiba já, andando na rua, um albino, meu fã, baterista. Quem quiser ver muito albino no Brasil…

JM: Tem uma cidade do Nordeste, né?

HP: Não, pera aí, cara (risos), deixa eu responder. Ele quer dizer.

Pedro Alexandre Sanches: É porque ele é paraibano.

HP: É em Caruaru, eu morei três anos lá. Um dia fui pra um aniversário, me convidaram para a festa para me fazer uma surpresa, mas não me disseram nada. Era o aniversário de uma pessoa, não era o meu. Aí fui. Dono da casa: albino. “Oi, tudo bem?” Até aí tudo bem. Esposa: albina. Aí já vi, tem brincadeira nisso aí. Na rua, 90%. Eu tinha 14 anos, não sei se ainda existe, o nome era rua Preta, porque só tinha branco, albino, talvez 90% de albino. Quando cheguei foi uma festa, né? Era tanto albino se abraçando, que engraçado, nada do lance que quiseram criar, de uma coisa meio preconceituosa, como se o albino tivesse sofrimento só porque é albino. Pra sofrer não tem cor, pra ser feliz e pra sofrer não tem cor. Esta cor aqui, o albino, meu corpo ser assim para mim é uma dádiva também. Meu carma na Terra que Deus me deu é ser assim, de eu estar falando com vocês agora, com meus 80, que é pouco. Eu acho, modéstia à parte, que pessoas como eu deveriam viver muito, pessoas que fazem muita coisa aqui. O ser humano não devia viver menos de 200 anos (risos). O cara é um escritor, um músico, um jornalista, faz um sucesso danado. Muitos com 70 anos já começam a ficar debilitados. O cara parece que já começa a pagar os pecados porque fez uma coisa linda pelo mundo. Isso acontece com religioso, com todo mundo. Já falei com Deus, ele me garantiu: “Olha, antes de você vir para cá já vou garantir, só não posso te dar jeito agora porque realmente o teu carrinho tem pouco tempo aí…”. “Mais 50 anos?” “Não, 40.”

PAS: Como é Deus, Hermeto? É albino?

HP: Deus é tão maravilhoso que ele é como a gente imagina. É mentira que Deus é uma fisionomia só. Existe a cor, existe a diferenciação de pessoas. Mas ele diz logo: chamem vocês aí de diferente, mas o meu diferente é semelhante, é a semelhança. Quando as pessoas acharem as coisas diferentes aí na Terra é que está havendo as brigas. O orgulho, a coisa da pessoa querer ser mais rica do que o outro, ver um mais pobre e ter 500 vezes mais do que ele, não dar uma casa pro cara sem querer aparecer, sem demagogia. Nem como obrigação, com amor. Por causa desse negócio da diferenciação vem o orgulho, vem tudo que vem. Aí é o que eu digo, se a gente vivesse 200 anos e desse pra acertar, ia dar tempo até pra se acertar o errado de tudo. Ou quem não acertasse ia pegar mais anos de carga, ia sofrer mais e envelhecer também, essa é a vida. Mas tudo bem. Eu estou muito feliz com o que estou fazendo até hoje, estou muito feliz. Eu faço o que mais gosto, o que mais amo, que é a música. E através da música eu amo, eu sei amar as pessoas, sei sentir as pessoas. Tudo eu ponho o sentir na frente. Nada de querer saber, de querer ter cura de uma coisa sem ter esperança. Ninguém pode pular a esperança pra ter a fé, e nem ninguém pode pular o sentir pra ter o saber, pra querer o saber. Quando é, é egoísmo. É isso que atrapalha o mundo. As pessoas estão muito apressadas. Estão querendo saber antes de saber se quer mesmo aquilo.

JM: Que nem eu, que queria saber dos albinos antes de você dizer…

HP: Você não teve paciência. Mas é uma coisa boa. É uma coisa que você já sabia.

JM: Já tinha ouvido falar.

HP: Só queria confirmar. Até aí tudo bem.

JM: Mas eu não vi com estes olhos. Você viu. Você bateu na porta lá.

PAS: Nos anos 1960 você foi tocar para a Rhodia, e dizem que não quiseram que aparecesse junto aos outros artistas por causa da sua aparência, imagino que pelo fato de ser albino.

HP: Foi, foi. Na Rhodia foi um negócio muito maravilhoso. Eu não acho uma coisa ruim. O rapaz que era o presidente da Rhodia, hoje já está lá onde Deus quer, não vou dizer o nome dele porque também ninguém conhece, não adianta. Estava lá tocando com Geraldo Vandré.

PAS: Quarteto Novo?

HP: Era Trio Novo. Na Rhodia foi o Trio Novo. Foi o Trio Novo pra lá. Vandré fazia um negócio, depois entrava o Trio Novo só pra tocar nos desfiles. O Quarteto Novo nem estava formado, o líder dessa época era o Cido Bianchi, um grande pianista, grande músico. Ele é que trabalhava na Rhodia e convidou essa turma, Airto Moreira, batera, piano, vibrafone. E eu fui convidado também pra… Mas quando o rapaz, o Lívio, me viu…

PAS: Falou o nome (Hermeto se refere a Lívio Rangan, então responsável pelo marketing local da multinacional francesa)…

HP: …Ele disse que eu era feio.

PAS: Disse que era feio?

HP: Disse que estava muito feio, destoante pro desfile. Aí o pessoal insistiu, pra ele pelo menos ver como era eu tocar. Pra resumir: eu toquei e ele acabou consentindo. Aí já pedia pra os fotógrafos na hora H ficar passando por mim só. Menino. Tinha um monte de coisas, às vezes a gente tinha que se vestir, cada um escolher uma coisa pra vestir pra um desfile, pra poder estar vestido a caráter, com as roupas que a Rhodia estava apresentando. E ele encantado com aquilo, com os tecidos, e principalmente com as coisas que estavam dentro dos tecidos.

PAS: Foi modelo antes de Gisele Bündchen

HP: Peraí. Agora é o cara. Olha o papo do cara. Já vai adiantar, então veio me entrevistar pra quê, ô, coisa (risos)? Calma, eu estou fazendo uma arredondanciazinha bonita. Fiquei tocando, nossa senhora, eu agradava demais na hora do meu solo. Eu vestia as roupas, e esse cara começou a se agradar do meu jeito. Na época eu tinha o cabelo compridão. Fui pros Estados Unidos, voltei com o cabelo por aqui, chego na Rhodia, com um mês ou dois vem o convite pra mim, pra ser o quê? Agora você vai dizer, que você adiantou. Pra ser o quê?

PAS: Modelo.

HP: Modelo. Modelo da Rhodia, meu amigo.  O que que você diz disso? Pra ser modelo da Rhodia! Aí já notei que já vem o lado abichaiado (risos), o cara querer que eu vou fazer modelo? Abichaiado que eu falo, não estou criticando os bichas, não, sabe?, porque eu tenho meu pouquinho também de bicha.

PAS: É mesmo?

HP: Eu só não dou, mas eu tenho um pouquinho de bicha. Então o que acontece? Veio ele pessoalmente, e já me pediu desculpa pelos mal-entendidos. Pra ele era mal-entendido. Aí eu digo: “Não, que é isso? Eu me amo. Eu me amo, eu me amo, não adianta me falarem nada que não gostam”. Eu só faço o que eu gosto. Não aceito fazer o que eu não gosto, pode me dar um mundo de dinheiro. E o dinheiro quer que você faça isso, porque o mal do mundo é o dinheiro. Claro que eu não aceitei, que eu não tinha tempo, estava na fase jovem, na fase de estudar mais e tocar cada vez mais, já com meus filhos e tudo. Bom, pra resumir, não aceitei e continuei, toquei até a hora que tinha que parar o desfile. Aí partimos pra um disco, continuamos na Rhodia, partimos pra um disco com Cido Bianchi, com esse pessoal que te falei. Fizemos um disco que até hoje tem na praça, Octo, Octo não sei de quê…

Brazilian Octopus (1970)

O disco único do Brazilian Octopus (1970), sem Hermeto na capa

PAS: Brazilian Octopus.

HP: Isso. Está todo mundo procurando esse disco.

JM: É raro.

HP: A qualidade do disco é como se tivesse sido feito hoje, todo mundo maravilhoso, todo mundo tocando bem. Foi nisso que deu a Rhodia. Então você vê, quando a gente quer as coisas a gente… Parei? Não parei, porque, primeiro, as pessoas que tocavam eram importantes, eram músicos bons também. Eu continuei com o disco. Já pensou se eu me entrego?, “então vai embora”, eu vou-me embora. Não, isso aí é uma fraqueza de cada um, não é porque o cara é presidente de uma coisa dessa aí que ele não tem o seu lado da fraqueza, que é coisa que todos nós temos.

JM: Tem uma história que contaram de você, quero saber se é verdade, que você foi pros Estados Unidos e o Tom Jobim começou a tocar no som ambiente, “Garota de Ipanema”, e ele falou pra você que não aguentava mais ouvir “Garota de Ipanema”. É verdade isso?

Em “Tide” (1970), Hermeto toca flauta na faixa “Tema Jazz”

HP: É, eu contei na época que ele me falou, isso aí foi quase 1970. Eu fiquei surpreso na época, porque ele estava no auge. A bossa nova estava no auge. Pra tocar em elevador é porque a música fez um… Eu ia subindo no elevador com ele, pra ensaiar com ele e com Eumir Deodato, que era o arranjador dele na época, ainda mora nos Estados Unidos. Eu fui justamente pra tocar uma flauta baixo no disco dele, que o Tom me convidou. Ele gostava muito do som da flauta baixo, tanto que tem um filho que é flautista também, e bom flautista. Fui subindo, quando vejo ele tira aquele chapéu dele, nervoso, nervoso mesmo. Porque a intenção que ele tinha da bossa nova era que ela fosse uma música num nível de estar tocando nos teatros, nos lugares. Mas aí os culpados maiores são os parceiros dele, não era ele. Por isso que ele falou. Ele falou pra uma das pessoas que ele sentia a música que aquela pessoa fazia, que era eu, com o Quarteto Novo. Ele era muito fã do Quarteto Novo. Ele falou no elevador: “Eu queria fazer um som parecido como aquele do Quarteto Novo”. Ainda bem que o elevador demorou, eu gostei que demorou, porque eu pude dizer pra ele assim: “Você mora nos Estados Unidos. Tem uma experiência que eu tenho, de quando eu saio do Brasil e demoro um pouco. Se eu demorar dois meses fora do Brasil, já começo a sentir falta do Brasil. Agora, Tom, quando a gente fala Brasil a gente fala no povo. A gente não fala nas coisas pessoais, nada disso, não”. O Tom é o seguinte, pra mim é um músico sensacional, a musicalidade do Tom Jobim, é só a pessoa ter a percepção pra isso. Porque quando o cara é como ele é, ele faz uma coisa… Ele queria evoluir mais, como eu fiz com o forró.

PAS: O que você fez com o forró, Hermeto?

HP: Se você pergunta o que eu fiz com o forró, você está fora do mundo.

PAS: Quero ouvir de você…

HP: Não, eu estou brincando, ah, bom, agora se expresse, diga antes.

PAS: Só estou levando bronca (risos).

HP: Não é bronca, é lida. Meu filho, eu estou brincando com você, deixa eu brincar também um pouco.

PAS: Deixo, deixo, é que você foi da bossa nova pro forró, e o Hermeto é tudo isso, né?

HP: É porque a harmonia, a base de harmonia, a base de você não tocar um forró o tempo todo, com aquele mesmo ritmo só. Forró não é um ritmo só. Forró tem variedades. É como eles falam, o jazz não é música, o jazz é um termo musical. O forró não é música, é um termo. O jazz, como o americano fala, é no sentido de improvisação. O forró nós falamos no sentido de você chamar uma pessoa pra festa. Em vez de dizer festa, diz forró. “Vamos no forró hoje”, então vamos pra farra. Mas aí criaram um estilo de música e botaram esse nome de forró. É bonito o nome, o estilo, mas que não seja uma coisa só. Por exemplo, eu fiz um disco de forró, já faz um tempo, vai ser lançado logo, logo. Fiz em Recife, que foi onde eu fui com 14 anos e fiquei. Toquei bastante lá. Você vai escutar meu disco de forró, tem chorinho, maracatu, frevo, tem de tudo, porque tudo é forró. Forró é festa. E aí você vê os meus discos, tem jazz, clássico, todos os estilos eu toco. Os músicos que tocam comigo tocam também, sem preconceito nenhum. É uma mistura que eu chamo de música universal. É justamente por isso. Quem me escuta tocar flauta, por exemplo, no comecinho eu já comecei a incendiar o forró com a própria flauta, no Ponteio (1967), com Edu Lobo. A gente gravou Ponteio, bem antes de música pronta pra festival, o Edu não fez música pronta.

Ele fez uma música, uma letra bonita, e nós ganhamos o festival, mostrando sem palavras, mostrando na prática. Porque pro público não precisa mostrar nada, o público está aberto. O público é o deus das música, na minha opinião. Sem o público teria só o ar pra respirar, mas o ar, pra música respirar, nada teríamos sem o público. Nunca tive qualquer coisa contrária com o público, a não ser uma pessoa que está às vezes, uma entre 3.000 ou 4.000 pessoas, falando, porque está emocionada. Aí eu digo: “Pode rir mais baixo, nós vamos dar um tempo pra você rir”. Dava um breque pro grupo, aí a pessoa ficava encabulada e não ria. Teve uma que disse: “Eu queria rir, cara”. Ela, na hora, assim como vocês também. Digo: então você escolhe. Tem hora que estou fazendo umas coisas, uns estilos, que você pode rir. Então você fica quieto, quando eu fizer assim (faz sinal de positivo com o polegar) pra você, você ri. Mas segura um pouquinho. Porque agora, nesta hora aqui, não tem condições de poder rir, nunca. Feliz, alegria, ri pra dentro. Não ri pra fora. Pronto. E era sempre um show, um sucesso, a maneira da gente conduzir, falar com o público. A música é isso, meu irmãozinho, estar aqui com vocês, brincando com vocês, vocês se adiantando nas perguntas. Porque é legal, antigamente não era brincadeira, antigamente o cara me entrevistava, eu ia me entrevistar com ele depois de um ou dois anos, a mesma pessoa chegava, cruzava os pés, olhava pro caderno, dizia: “Seu Hermeto Pascoal, me diga uma coisa, quando o senhor nasceu, qual foi o dia e a hora?”. Essa pessoa já tinha me perguntado dois anos antes, um monte de vezes, a mesma história. Eu dizia pra ele: “Olha, eu não morri, você está me perguntando a idade de novo, cara?”. Mas brincando também, né? Quem estava perto morria de rir com ele, e acabava ficando uma amizadinha só.

JM: Você abordou levemente a questão da morte, de viver 200 anos.

HP: Isso, sim, sim, sim.

JM: Estou curioso de saber, você tocou com Belchior?

HP: Não, mas o Belchior era um cara tão comunicativo. Tive um convite uma vez. Foi assim, me lembrei agora, você vê que coisa bonita (passa a mão pela barba). Estou com a barba molhada ainda, estava lavando pra ficar bem cheirosinho pra vocês.

PAS: Lava todo dia?

HP: Toda hora. Belchior, foi quando eu morava aqui em São Paulo, na Aclimação. Me ligaram, tinha uma turma do Ceará que queria falar comigo. Era uma turma nova, ninguém tinha nome ainda. Marcaram, foram na Aclimação. Quando chegou, aí foi que eu conheci o Fagner, o Belchior e outro, doutor…

PAS: Ednardo?

HP: Ednardo, foi também.

JM: Amelinha.

HP: Não, Amelinha não estava.

PAS: Fausto Nilo?

HP: Não, só foram esses aí e outro amigo deles que agora não me lembro o nome…

JM: Deve ser o Rodger.

Hermeto com Fagner no encarte de "Orós" (1977)

Hermeto com Fagner no encarte de “Orós” (1977)

HP: …Se não me engano é advogado, amigo deles. E pra que eles foram lá? Você vê o que é a meninada, né? Foram lá pra gente fazer uma onda, competir, como se fosse um tipo de competição, claro que sadia, musical, com os baianos, com a onda que estava dos baianos. Na música, pra mim, eu nunca acho que música é moda. Música é uma coisa que vai em todas… A música pra mim está em todas as modas, em todos os contextos. Na minha opinião, né? Aí o que aconteceu? Eu agradeci, nós batemos um papo legal, que era justamente o que eles queriam, fazer a turma do Ceará. Disseram: “A gente vai fazer uma inserção com você, Hermeto, porque você é o cara”. Eu digo: “Não, eu agradeço muito a vocês”. Mas é aquela história, quando você convida uma pessoa pra fazer uma coisa ela tem o direito de querer ou não, né? E tem que ser sincera também. E ficamos amigos, eu não quis porque estava com essa ideia do grupo, do meu grupo, que é o que estou fazendo hoje. Estou falando de coisa de 30, 40 anos atrás. Eles aí continuaram e tudo bem, e quando foi daqui a uns tempos o Fagner me convidou pra fazer os arranjos do disco com nome de Orós, que é aquele rio maravilhoso lá…

PAS: Clássico.

HP: …Que seca demais.

JM: O açude.

HP: O açude. Fizemos um disco, eu até ganhei o prêmio de melhor arranjador do ano. Orós, quem quiser, é um disco antológico com Fagner. Só que ele é aquela história… O difícil do músico é ele segurar a qualidade da música. Não é que ele não segurou, é que ele ficou mais comercial. Ele queria fazer uma coisa. Porque um cara que grava um disco que nem Orós não podia chegar assim… Não estou criticando, gente, estou sendo amoroso. Isso pra mim é progressão. Estou sendo de pai pra filho. Mas é o meu jeito de pensar, não estou criticando ele porque ele é isso ou fez isso. Estou só dando a minha opinião. Quando fiz o disco, quando faço um disco pras pessoas, eu dou a minha música, o meu amor pras pessoas, e eu sei que elas gostam também. Mas depois tem aquela coisa dos produtores… Os produtores induzem, induzem de um jeito que você, quando vê, já foi, com o dinheiro. A coisa que eu tinha mais medo era quando eu via o produtor se aproximando de mim. Já ficava de olho pra ver. Tem produtor que chegava pra dizer pra mim que eu podia, em 15 dias, ter o grupo mais famoso do Brasil. “Só que tem umas coisinhas que eu queria te pedir, Hermeto. A roupa, esse jeito do grupo se vestir, e a música, pra você maneirar um pouquinho, tocar uma música mais simples”. Como quem diz “toca brega”, como quem diz isso, né?

PAS: “Toca na boquinha da garrafa…”

HP: Nem isso, quando o cara fala isso pra mim ele está praticamente ofendendo a minha mão. Não adianta, ninguém tirou e ninguém tira a minha maneira, o meu ser, o meu amar que eu quero. Eu não premedito, eu sinto, quando vem, aquela coisa vem. E outra coisa, eu sou 100% intuitivo, 100. Não é qualquer coisa, não, é 100% intuitivo.

JM: Com 8 anos você já era assim, né?, quando começou a tocar, lá em Lagoa da Canoa.

HP: Com 8 anos. Eu criancinha, eu me sentia que eu era uma criança. Tanto que quando saí de casa – quando saí de casa no bom sentido -, quando fui tocar com meu irmão, que fui-me embora pra Recife, foi ideia minha. Meu irmão mais velho, Zé Neto, já Deus levou, tinha, tem um ano só a mais do que eu. E lá o irmão mais velho tomava conta do mais novo.

PAS: Ele era albino também?

HP: Albino também. Era eu e meu irmão só. Nós fomos pra Recife. Muita gente pensa que minha mãe e meu pai ficaram chorando, eu com 14 anos. Mas eles confiavam naquela coisa espiritual, naquela coisa sem religião, na coisa lá do interior. Mamãe dizia: “Meu filho parece um homem”. Assim mesmo. Aí, quando cresci, ela dizia – porque eu sempre fui brincalhão, eu criança era brincalhão -, mamãe dizia, com seus 86 pra 87 já, deitadinha no sofá, umas pessoas na sala de casa, aqui no Rio: “Mas meu filho, nunca vi você ser homem” (risos). Como querer dizer que eu estava brincando. Eu, pra brincar com ela – nem a minha mãe eu perdoei quando ela falou -, digo: “Mãe, a senhora não tem os seus netinhos aí já? Como a senhora diz que eu não sou homem?”. Aí acentuei mais pra ela ficar até com vergonha do que eu falei, com aquele lado do Nordeste. “Não, meu filho, eu estou dizendo isso porque você brinca muito, desde quando você era pequeninho”. Eu não sinto a diferença da minha idade. Não sinto, não é porque não quero, é porque não sinto mesmo. Não sinto, por exemplo, que os dias, como inventaram que Deus disse – como se Deus cometesse uma gafe dessas -, que uns dias são iguais perante os outros. Olha só que gafe todo mundo, as pessoas cometem. Eu criancinha já quando minha avó dizia pra mim: “Meu filho, os dias são iguais perante a Deus”, eu, pequenininho, já sorria, já era ironiquinho. Eu não tinha uma profundidade, porque não era profundo isso, profundidade que eu digo é de antecipar as coisas. Não é que eu não queria, eu nem tinha vontade ainda de achar como é que vai ser amanhã, como vai ser o meu show hoje. Se eu souber, pra mim, não é novidade. Nem vou. Por que eu tenho um público, graças a Deus, grande? Porque o público, quando tem um show do Hermeto… O pessoal agora está tocando músicas do Hermeto e está lotando teatro.

PAS: Você já ouviu Hermeto no elevador?

HP: Não, aí repara. Quando falo, digo, vejo, é porque quero viver o agora, o hoje. Eu tenho que fazer legal, como gosto e sei que faço legal, porque eu não faço o que eu não gosto. Eu faço o que eu gosto. E o amanhã meu é hoje, sempre. É hoje, é hoje, é hoje, é hoje, é hoje. Se eu morrer, vou morrer hoje. Entendeu? No dia que eu morrer é hoje. Aí você perguntou?…

PAS: Se você já ouviu Hermeto no elevador, como naquele dia Tom Jobim ouviu.

JM: Ou mesmo no rádio, ou no táxi.

HP: Não, porque a imprensa não tem gabarito pra isso, não tem alcance. Eu não estou ofendendo a imprensa, estou sincero.

PAS: Pode ofender à vontade, ela merece.

HP: A imprensa devia se sentir envergonhada, como é que eu loto teatro mais do que muita gente? Já estive em teatro com o meu amigão Gilberto Gil assistindo meu show, eu chegar e Gil sentado, e eu sabia que ele tinha um show no mesmo dia, em Brasília. Gilberto Gil é uma pessoa maravilhosa, está sentado, eu vejo ele curtindo o show. Ele ficava vidrado. Gosta muito do meu jeito de falar também, como eu gosto do dele. Quando ele fala as coisas brincando, quando eu brinco também eu não sei se sou chato, mas se eu for, também, que se dane (risos). Estou lá tocando, olho, vejo o Gil, ele já sabe que eu não enxergo, né? “Ih, rapaz, você aqui?” Ele disse: “Não tinha ninguém lá no meu, tinha pouca gente, não teve o show, vim assistir o seu”. Olha que humildade, que pessoa maravilhosa. Por quê? Porque, naquela época, interesses comerciais de empresas que me chamaram pra tocar, pra trabalhar em televisão inclusive, do jeito que me chamaram eu não aceitei. Faziam isso, pegavam os artistas na hora que eu estava fazendo show, botavam no mesmo dia, com divulgação de tudo que era coisa, e eu acabava levando mais público. Não era porque era melhor, gente. É porque as pessoas exageram, ou é 8 ou é 80. A imprensa – até parece que estou me contradizendo -, quando falei aquilo não falei na imprensa em geral. Eu falei naqueles que sabem muito bem o que não fazem pra música, não minha, pra música boa no mundo. Toca a aqueles, não a vocês que vieram aqui me entrevistar. Estou dizendo a quem toca. A carapuça que caia, não estou generalizando a imprensa, não. Sem a imprensa ninguém me conhecia também. Por mais que eu tenha público, o público me conhece. E agora, com a internet, nossa senhora, pra mim está sempre maravilhoso. Estou dizendo pra a pessoa, quando começar a ser músico ou qualquer coisa, encarar as coisas. Quanto mais coisa você encarar, mais você vai fazer a sua coisa melhor, vai ter mais convicção daquilo que você quer fazer.

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PAS: Você falou que não enxerga, mas enxergou o Gil naquele dia. Quanto você enxerga ou não enxerga?

HP: Não, eu enxergo, eu enxergo pouquinho. O Gil estava perto. É amigo meu, um cara legal, maravilhoso, não precisava nem pedir pra subir no palco. Subiu e ficou assim, como público, curtindo. O Gil é muito musical. Eu tenho o Gil na minha mente como aquele músico… Por isso eu não perdoo os músicos que têm a musicalidade e não fazem, e não exploram. Eu não perdoo, mas não é com raiva, não…

JM: Você fica triste.

HP: Rapaz, o Gil, no tempo da TV Record, o Gil com o violão… Você precisava ver o Gil tocar violão, com o balanço que ele toca… Ele cria, sai tocando. Depois eles formaram uma música pra fazer sucesso, tudo bem, mas que continuasse com aquele nível. Mas os caras foram ficando, ficando, e o tempo foi passando. Não quer dizer que Gil não é músico, o músico Gil é um músico maravilhoso. Só que na prática é igual a um grande time de futebol que não está jogando bola. Precisa voltar a jogar bola.

JM: Precisa voltar a ter gosto pela bola.

HP: É. Mas falo sempre sobre eles, sobre eles todos, os baianos são todos… Não vi nenhum baiano burro, não, cara. Baiano burro, sabe o que acontece com baiano burro? Eles comem aquela coisa amarela que eles fazem, como é nome daquilo ali?

PAS: Acarajé.

HP: Eles comem acarajé botando açúcar por sal. Burro… Aí o sujeito se estivesse aqui dizia: “Não, Hermeto, esse aí nem nasceu ainda”.

JM: Quando Caetano Veloso fala de “hermetismos pascoais”, ou “o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem”…

HP: É outro genial, é outro poeta maravilhoso.

JM: Mas ele se refere à sua música como hermética, como uma música difícil.

HP: Mas o Gil e o Caetano, eles representam demais. São os baianos. O Sivuca até dizia para mim: “A Bahia é a África brasileira”. Ele achava isso. Eu nunca tinha entrado na África, o Sivuca tinha morado na África tocando com Miriam Makeba. Aí estive na África, pô, só não estou na Bahia porque não tem o nome de Bahia. O negão me vendo assim… Hoje não pode dizer negão, esses caras que dizem que não é negão, imagina pra que lugar eu ia mandar esses bobão? Fizeram essa lei boba aí, como se lei tivesse cor, como se alma tivesse cor. O que é isso, gente? Tem cor, tem cores, vocês é que não têm cor. Tem cores na mente pra pensar mais. Mas é o que eu te falo, o preço da goiaba é 120, cara. O preço da goiaba é 120.

JM: Te dou 20 mil réis pra tirar? Três e trezentos?

HP: Mas e depois? Como que você não vai me dar agora, pra você lidar com os juros?

PAS: Já que lembraram Luiz Gonzaga, vou voltar no forró. A bossa nova, pelo menos no início, tirou a sanfona da música brasileira. Portanto, tirou o forró? E você entrou com sanfona e sem sanfona, qual foi seu lugar nisso?

HP: É, pra você ver como é que pode… Você acha que um Tom Jobim ia ter uma ideia dessa, um genial músico que era o Tom Jobim, pra achar que uma sanfona não pode tocar toda e qualquer música? Foi educado, eu não digo levado. Foi educado pelos produtores, que queriam fazer as coisas mais comerciais. Foram eles que levaram o Tom a ser educado. Musicalmente, pra ele, ele estava fazendo uma coisa que… Eu até creio, eu sinto que ele poderia estar um dia num canto e dizer: “Vocês estão exagerando, a bossa nova que eu queria, que eu pensei”. Tenho certeza que ele falou isso. Mas é o que estou te falando, o que tinha ao redor dele, pra ele se firmar cada vez mais, não estava à altura dele. Ele não era assim como o Hermeto, teimoso. Tom era mais educado do que eu. Por isso que ele cedeu. Mas pelo menos ele viu uma pessoa que ele não procurava, apareceu dentro do elevador aquela pessoa que ele desabafou um pouquinho, e falou, e eu sei que é verdade, eu sinto. Tom Jobim agora está ajudando outros compositores intuitivamente, Deus dá a permissão pra isso, tenho certeza absoluta. E muita coisa que ele gostaria de fazer, como outros compositores que se foram também e que vão ser explorados a vida toda… Tocar música do Villa-Lobos todo dia e toda hora cansa o espírito do Villa-Lobos. Villa-Lobos não quer mais isso, e os caras ficam fazendo isso, isso e isso, esse modismo pra aparecer. O cara vai tocar sinfônica, vai tocar em tal lugar, quando vai ver, os mesmos compositores, tendo compositores jovens, no Brasil mesmo, no mundo todo, fazendo coisas maravilhosas com sinfônica, com tudo. Eu, pra ter a chance que eu tenho, pequena, com a sinfônica, tive que mostrar, tive que ser convidado, e eu aceitei, porque eu sabia que ia ficar. Então, quando eu respondo uma coisa pra vocês, eu falo outras também.

 

PAS: Dizem que você não enxerga muito bem, mas a gente queria muito saber o que você está enxergando da atual situação política do Brasil.

HP: Bom, a situação política, eu vou falar, do mundo, é aquilo que eu te falo…

JM: Você já tinha visto, na sua vida de 81 anos, um período como este?

HP: Não, por exemplo, com 81 anos – agora já é hoje -, eu nunca vi falar. E eu me lembro que eu alcancei o tempo da ditadura. Era o tempo que eu estava assim num lugar, por exemplo, tocando na Argentina. Eles me chamam hoje de Maradona, comparando o sucesso que eu sou na Argentina. Estava na rua de repente na Argentina, tinha lugares que, pra ir pro teatro, você tinha que passar pelos lugares com mandado. Como aqui no Brasil. Só que quero dizer pra você, aquela época era ruim, coitados dos caras que morreram, que mataram… Aí não vou nesse assunto, porque a minha política, digo sempre, é a música. Não me meto em política. Mas eu sou um cidadão também. O que eu sinto é que o mundo está virado, cara, não é só aqui, não. Mas aqui, como nós somos brasileiros e falamos português e entendemos… É muito generalizado, no mundo inteiro, mas pior é o que estão descobrindo agora, e muita gente que está sendo respeitada, que já morreu, e eram os precursores disso. E já morreram. Estou dizendo porque tenho certeza espiritual que eles sabem disso. Deixaram muita gente. Não é normal o Brasil ser esse país que é, com essa beleza…

PAS: Com esses músicos…

HP: Ser um dos países mais duros do mundo. Não, não, por quê? Quem estava com o dinheiro na mão, tirou da mão e botou no bolso. Botou no bolso, foi juntando, guardando. Quem guarda dinheiro, pra mim, não demora, demora, mas vai ser guardado. Está todo mundo guardando. O que quero dizer pra vocês é que isso tudo que está acontecendo, vamos esperar, eu não vou alcançar…

PAS: Ué, 200 anos!

HP: …Vocês não vão alcançar também, porque ninguém alcança, porque não vai acabar isso. Isso tem influência. Isso é uma doença. Dinheiro é uma doença. Isso tudo é feito por causa de dinheiro. Dinheiro é uma doença. Como é que o cara é tão bom, estuda, se forma, e guarda bilhões, sabendo que não vai viver 100 anos, por exemplo? Se fosse pra gastar, nem ele vai poder gastar. Ora. O que é que você tem que fazer com isso? Tem que deixar. Eu achei, mesmo assim, que está melhorando, pelo menos aparentemente. Estão descobrindo os nomes. Só que quando descobre o nome de uma pessoa, aquele que descobre também vai depois. Você viu o que acontece? O que botou os outros já está lá. Eu acho que ele fez isso exatamente pra se encontrar depois, “pode deixar que eu estou indo também”. Porque todo mundo sabe. Todo mundo sabe o que fez. Mas a mim não, pra mim vocês não fizeram nada. Claro que não sou egoísta, não quero só pra mim. Mas dentro da minha área, da música, até eu me aproveito. Porque a música também não é brincadeira, a música se aproveita dessas coisas. Pra fazer, pra brincar, em vez de chegar e eu ficar revoltado, ir pra rua, gritar, quebrar o vidro do cara que está começando uma loja? É, senão pior, igual aos caras que estão fazendo o errado. Com um erro você não corrige o outro erro. Soma o erro, né não?

JM: O Miles Davis nunca deu o crédito de Igrejinha pra você, ou deu?

HP: Houve uma onda lá… Quando eu vi que era onda… Miles Davis era um cara rico, cheio de tudo.

JM: Airto Moreira falou que a música era sua.

 

HP: Airto falou, mas eu não falei, eu não confirmei. É só pedir as provas pro Airto, pede pra ver se ele dá as provas. Eu defendo o Miles. Eu defendo, porque conheci o Miles pessoalmente. Miles Davis não precisa de dinheiro. Sabe o que eu fiz pra acabar com a festa? Naquela época eu tinha umas 4.000 músicas. Eu pedi pra dizer pro advogado: “Olha, essas músicas eu tenho, se o Miles Davis quiser…”. Quando teve essa confusão o Miles estava vivo ainda. Eu disse: “Doutor, não é por causa de duas músicas. Se eu, dono das músicas, não estou brigando por elas, quem quer dinheiro? Eu não quero dinheiro”.

JM: Eu sei a história mais ou menos, o Herbie Hancock e o Wayne Shorter entraram com uma ação lá nos Estados Unidos, pra entrar dinheiro pra você.

HP: Sim, mas eu não pedi. Eu não pedi. Eles tinham raiva do Miles Davis, sabe por quê? Miles Davis gravou, esqueci agora, no disco dele uma música popular mexicana… Ele botou no nome dele. O Miles era um cara tão desligado, assim como eu. Por exemplo, quem fizer minha produção, a gente que é músico de verdade não se liga pra dinheiro. O Miles não ligava. A pessoa que cuida da produção tem interesse em ganhar mais dinheiro. Como o Miles era um nome, era aquele nome, e o mexicano era como… como chama, pra todo mundo a música já tá liberada?

PAS: Domínio público.

HP: Isso, domínio público. Que aconteceu? Ele não botou o nome, a produção dele não botou o nome, e foi pro cara que era o dono da casa. Se alguém faz uma coisa na sua casa, o que sai logo? Que é o Hermeto, está na casa do Hermeto. Aí é que vem a coisa. Aí que falei, pra acabar. Eles queriam fazer uma onda, como já sentiram que eu estava sendo muito bem forte nos Estados Unidos… Tanto é que agora vocês têm que me chamar de doutor. Como brasileiro, ganhar um prêmio desses nos Estados Unidos, minha gente…

JM: Honoris causa.

HP: Ninguém, não é qualquer um que ganha. Então, pelo merecimento, pela música. “Ah, mas é difícil.” É difícil, não, senhor. Pra fazer as coisas, quando se quer fazer, em qualquer área, é mais difícil sempre. A gente veio com uma missão na Terra. Você não vê os corredores? Os caras se explodem pra ganhar uma corrida. Isso é fácil? Não é, não. Agora, a nossa corrida, o corredor pelo menos tem uma chance, quando tem uma certa idade não corre mais. E na música, na imprensa, enquanto é vivo a gente vai rodando. E não tem moleza, não.

(Entrevista publicada originalmente na edição 959 de CartaCapital.)

Estados Unidos do Mato Grosso

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Era uma vez o Mato Grosso, que a ditadura dos Estados Unidos do Brazil decidiu fatiar em duas metades, instituindo, em 1º de janeiro de 1979, o estado do Mato Grosso do Sul. Na parte sulista dos Matos Grossos desembarquei em 27 de julho de 2017, para participar como observador convidado do 18º Festival de Inverno de Bonito, evento multicultural sediado numa estância turística que conheço desde os anos 1990, um mar de água doce que jorra do Aquífero Guarany para a superfície da Terra, num pedaço de terra à parte do mar de gado e do mar de soja que é o Mato Grosso do Sul, que é o Mato Grosso do Norte dos indígenas do Parque Indígena do Xingu, que são os Matos Grossos todos.

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É árduo para um forasteiro desinformado decifrar o Mato Grosso do Sul, ainda mais se o forasteiro, como é meu caso, for um paranaense do norte, interiorano, que se converteu a fórceps em paulista metropolitano, em paulistano dito cosmopolita, em filhote desgarrado do prefeiturista João Doria Jr. do PSDB. Cumpre aqui lembrar que a província do Paraná foi instituída pelo imperador Dom Pedro II em 1853, como um abcesso de terra expulso do seio da província de São Paulo – poderia se chamar hoje em dia Província de São Paulo do Sul, presidida pelo governador-ditador Sergio Moro, também do PSDB em coligação com o (P)MDB tieteense do paulista do norte Michel Temer. Numa mesma natureza de fenômeno, em 1988 o pós-ditador acidental (?) José Sarney, do PMDB (ex e futuro MDB), separou Goiás em Goiás e Goiás do Norte, ou melhor, Tocantins, um estado hoje nortista que foi arrancado não apenas do corpo de Goiás como da região Centro-Oeste dos matos grossos todos, de cerrados, pantanais, aquíferos, parques indígenas, florestas e mares de soja e gado. A ruralista Kátia Abreu é goiana que virou tocantinense, tal qual a violeira Helena Meirelles e a atriz Aracy Balabanian são mato-grossenses que viraram do sul e o poeta Manoel de Barros é cuiabano do norte que viveu sempre no (Mato Grosso do) sul.

Logo comecei a me perguntar em que natureza de divisão eu estava penetrando, ao chegar ao MS convidado pelo Festival de Inverno de Bonito, na figura de Jerry Espíndola (um dos muitos filhos músicos da extraordinária família campo-grandense Espíndola), sob patrocínio do governo tucano sul-mato-grossense (e a um custo total de R$ 2,5 milhões, segundo os organizadores, divididos em R$ 2,2 milhões do governo estadual, R$ 150 mil em emendas parlamentares, R$ 100 mil da prefeitura também peessedebista de Bonito e R$ 50 mil da Fundação do Turismo do estado). Onde estava eu? Mato Grosso ou Mato Grosso do Sul? Direita ou esquerda? América ou América (apenas) do Sul? Sudeste ou Nordeste? Pátria Grande ou Pátria Pequena? Ocidente ou Oriente? Fascismo ou comunismo? Carnívoros ou vegetarianos? Gado ou soja? Norte ou sul? Guerra ou paz?

Como diria a compositora paraibana Roberta Miranda, talvez fosse melhor nem pensar, apenas sentir.

MST à margem da rodovia Campo Grande-Bonito

MST à margem da rodovia Campo Grande-Bonito

Os sentidos ficaram de fato aguçados, desde a visão de dois tamanduás-bandeira em pontos distintos do trajeto terrestre de 280 quilômetros entre a capital Campo Grande e Bonito, até o encontro institucional com Ney Matogrosso, outro sul-mato-grossense nascido apenas mato-grossense, em 1941, na pantaneira Bela Vista, próxima de Bonito e fronteiriça com o Paraguay.

Ney, cantor do brado seco & molhado “desperta, América do Sul!” (1975), se apresentaria como astro principal da praça da Liberdade na noite do sábado 29, num show 100% marcado e sem surpresas preparadas sob medida para a ocasião, por um cachê de R$ 118,5 mil. É difícil saber quantos sul-mato-grossenses (etc.) o assistiram na vila turística com rede hoteleira lotada (e repleta de gringos), mas a organização estima em 38 mil os espectadores dos quatro dias de festival (contra 23 mil do ano anterior), distribuídos em 211 atrações de várias áreas artísticas.

Na resistência em se afirmar sul-mato-grossense ou só mato-grossense (como, afinal de contas, delata o sobrenome-fantasia hiperfantástico), Ney parecia ostentar a divisão e o isolamento que separa os Matos Grossos do resto do Brasil, mesmo que parte substancial das divisas nacionais atuais sejam obtidas a partir dos mares de água doce, gado, soja e música sertaneja universitária. (A indústria de massa que sustenta essa última modalidade de riqueza se concentra fortemente em Campo Grande, segundo me contam, nos bastidores da produção do festival, os músicos e produtores culturais Jerry Espíndola e Rodrigo Teixeira. Luan Santana, por exemplo, é campo-grandense; João Bosco & Vinicius nasceram cada num Mato Grosso; Michel Teló é paranaense criado no MS).

A negação da raiz pode soar como teimosia de Matogrosso, mas a divisão e o separatismo guardam profundas raízes históricas. Houvesse o Paraguay vencido a guerra (1864-1870) que lhe levou o nome em desfavor da tríplice aliança formada por Argentina, Brasil e Uruguay, toda a região que envolve as águas de Bonito, as neymatogrossices de Bela Vista e os pântanos fronteiriços (com a Bolívia) de Corumbá não seriam Brasil, mas sim Paraguay.

Como cantou o campo-grandense Almir Sater (“lembrando o que não se diz”) na linda “Sonhos Guaranis” (1982), se os brasileiros tivéssemos perdido a sangrenta Guerra do Paraguai Ney Matogrosso não seria nosso, mas sim um rebelde cantor andrógino revolucionário subversivo paraguayo. De certa forma, a área de divisão em que se encontra este desinformado forasteiro paranaense sul-paulista é uma gigantesca zona de fronteira. Conflagrada ou pacata? Isolada ou universal? Brasil ou Paraguay? Portugal ou Espanha? Estados Unidos ou Brazil?

Melhor nem pensar, apenas sentir.

IMG_5144Divisões e fronteiras à parte, há uma mágica estranha no ar, desde o cortejo de abertura das festividades com um grupo de adolescentes bonitenses que dançam à moda indiana de Bollywood. A curadoria artística desta edição do evento optou por um lance ousado: na parte musical (Bonito nesses dias está povoada também por teatro, circo, cinema e dança), o Festival de Inverno se fechou quase exclusivamente no próprio umbigo sul-mato-grossense, num ato de autoelogio pelos 40 anos de criação do estado pós-guarany. Exceção solitária é Karol Conka, rapper funkeira paranaense (de Curitiba, atual capitania sul-paulista de Moro), hoje estrela global, que passa feito foguete fechando a noite pop de sexta-feira 28. Karol não fala com imprensa nem atende à imensa fila de fãs Brasil-profundenses carentes de um mínimo de atenção cultural.

Exceções bem delimitadas, a identidade aflora na programação de rua, uma identidade que nem é exclusivamente sul-mato-grossense ou mato-grossense. É, bem mais que isso, paraguaya, boliviana, pan-americana, fronteiriça, caipira, sertaneja, sertanejo-universitária, bollywoodiana, euro-indígena.

A surpresa, para este forasteiro, é mais vasta que essa provocada pelo apego identitário com as coisas do MS. Apesar de filiado a um partido que flerta com  a direita mais reacionária, quando não com o fascismo propriamente dito, e enroscado com delações carnívoras da Friboi/JBS, o governador tucano Reinaldo Azambuja deixa que as equipes artística, turística e de cidadania do festival evoluam com desenvoltura pelo território das identidades ditas minoritárias. Os sul-mato-grossenses orgulham-se de abrigar em seu seio a primeira secretaria estadual indígena das tristes terras do Pau Brasil. PSDB ou PT? Caubóis ou índios? Genocídio ou identidade?

As comunidades LGBT, feminina e indígena protagonizam lindamente grande parte do 18º Festival de Inverno de Bonito, seja em momentos festivos (como num multicolorido, multissexual e multiétnico desfile de modas bonitenses) ou em instantes graves de militância, como quando a jovem cantora e compositora campo-grandense de reggae Marina Peralta (cachê de R$ 20 mil) eleva-se altiva no palco para cantar e discursar de peito aberto e rasgado contra o feminicídio. “Hoje, irmãs presentes, o que eu tenho pra dizer é: cuidado. Encontre força em você. Conheça você mesma. E não vai se seu coração disser pra não ir. Cuidado”, diz, entre cânticos repetidos em coral pela plateia, do tipo “lugar de mulher/ é onde ela quiser” e “deus é mulher“.

IMG_9966Dividindo vizinhança com a tenda LGBT, a Tenda dos Saberes Indígenas dá guarida fraternal a guaranis-kaiowás, kinikinaus, ofaiés, guatós, atikuns, terenas, kadiwéus e guaranis-ñandevas. Ali, brilha o jornalista indígena Sidney Terena, que faz entrevistas e transmissões ao vivo por TV comunitária e recebe, na manhã do sábado, a visita solidária de um Ney Matogrosso que se move pela cidade à paisana, tão (declaradamente) preocupado com as identidades indígenas quanto (aparentemente) desapaixonado pelas digitais centro-ocidentais do Matogrosso, do Brasil e da América do Sul.

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Embora mais voltada à chamada MPB de extração (sul)mato-grossense, a curadoria opta por não discriminar o sertanejo universitário. Formada por irmãos nascidos paranaenses em Catanduva e criados sul-mato-grossenses fronteiriços com o Paraguay em Ponta Porã, a dupla Jads & Jadson fecha triunfalmente a primeira noite, misturando sertanejo urbano, caipirice pantaneira e rock’n’roll paulista e brasiliense, sob cachê de R$ 170 mil.

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(Sim, a cultura sul-mato-grossense existe e viceja para além dos modismos de massa, mesmo sob brutal ignorância dos Estados Unidos do Brazil Litorâneo. Além de músico e produtor, Rodrigo Teixeira é jornalista e autor dos belos livros históricos Os Pioneiros – A Origem da Música Sertaneja de Mato Grosso do Sul, de 2010, e Prata da Casa – Um Marco da Música Sul-Mato-Grossense, de 2016. Em barraca montada ao lado de um dos palcos na praça da Liberdade, o pesquisador Carlos Luz exibe com orgulho uma formidável coleção de discos sul-mato-grossenses em vinil.)

A memória transborda em Bonito, e rapidamente se percebe que os pós-sertanejos pop-roqueiros Jads & Jadson configuram menos regra que exceção. O orgulho sul-mato-grossense aflora em apresentações delicadas, de inspiração tradicional-emepebista, como a do cantor e compositor (e ator global) Gabriel Sater (cachê de R$ 20 mil). Filho de Almir, ele nasceu paulistano, mas foi criado sul-mato-grossense e ostenta identidade musical fortemente pantaneira.

Numa espécie de duelo entre irmãos-em-música, o multiinstrumentista Marcelo Loureiro (R$ 20 mil) sucede Gabriel e fecha a programação da edição 2017 com uma apresentação de final de domingo esvaziada, mas espetacular, fundada nos saberes modernizados da viola caipira e da harpa paraguaia. Nascido carioca, mas filho de sul-mato-grossenses de Guia Lopes da Laguna e de Caracol e neto de paraguayos e argentinos, Marcelo cresceu no interior do MS e aqui recolheu o amor devotado por viola, violão e harpa.

Tal qual fariam um Luiz Gonzaga e um Renato Borghetti na sanfona, ou um Raphael Rabello e um Yamandú Costa ao violão, Marcelo povoa de virtuosismo e nobreza seus já nobres instrumentos e musicalidades de eleição. A influência indígena na harpa europeia é o grande mistério, ele afirma: “Quando chega na América do Sul, com a influência indígena, aquela coisa do povo, a coisa começa a mudar. Aí tem algo diferente”.

Na fila do gargarejo, este observador desinformado e emburrecido pelos preconceitos da vida lembra-se de quando, criança, no colo dos pais, reclamava de desgosto pela “música portuguesa” (querendo me referir aos sons àquela altura desagradáveis a meus ouvidos, das harpas paraguaias paranaenses de Chitãozinho & outros Xororós). Marcelo confirma a impressão ao mencionar a influência do paraguayo Luis Bordón, intérprete de temas natalinos instrumentais cerzidos à base de harpa, mais onipresentes que a baiana Simone nos finais de ano das décadas de 1970 e 1980. Ao mesmo tempo, o artista contrapõe a lembrança da presença da harpa paraguaia na gravação de Almir Sater  do “Trem do Pantanal” (1982), dos cariocas tornados sul-mato-grossenses Paulo Simões Geraldo Roca.

“Este é o melhor caminho/ pra quem é, como eu,/ mais um fugitivo da guerra”, canta o mitológico “Trem do Pantanal”. Caipira ou universal? Erudito ou brega? Europeu ou americano? Uma conversa com Loureiro deslinda um assombroso universo subterrâneo (qual o Aquífero Guarany), profundo, fronteiriço, paraguaybrasileiramente pan-americano.

Os filhotes Gabriel e Marcelo haviam sido representados antes pelo suprassumo de identidade histórica chamado Dino Rocha, veterano sanfoneiro interiorano de Juti, rei do chamamé, que na abertura do festival explicou, traduziu e decifrou toda e qualquer divisão, toda e qualquer guerra de fronteira: à sua esquerda, na banda, todos são paraguayos (harpista incluído); à sua direita, todos são brasileiros. Do lado de cá do muro que separou o Brasil da América, não somos todos nós que assimilamos tal musicalidade – alguns de nós só a assimilam quando traduzida ao idioma e à ideologia sertanejo-universitária, alguns menos ainda nesse caso.

Em Bonito, essa natureza de embate vem à flor da pele no show conjunto das irmãs Tetê Espíndola e Alzira E (cachê de R$ 30 mil), campo-grandenses nascidas respectivamente em 1954 e 1957 que, migrantes, vieram a São Paulo constituir, com o paranaense de Londrina Arrigo Barnabé e o paulista de Tietê (com raízes paranaenses em Arapongas) Itamar Assumpção, o movimento cosmopolita, ~maldito~, excêntrico, urbaníssimo que veio a se denominar vanguarda paulista (ou paulistana). É desconcertante o túnel sub-aquífero que liga pântanos, matos grossos e vilas velhas à província travestida de megalópole SP.

Alzira e Tetê têm trabalhado sempre na interface entre a vanguarda e a origem. Alzira, apesar de iniciada na carreira discográfica em 1983 com títulos caboclos como “Terra Boa” (de Almir Sater e Paulo Simões) e “Nossa Senhora do Pantanal”, aproximou-se progressivamente do experimentalismo urbano, em parcerias com Itamar, a paranaense Alice Ruiz, a mato-grossense Lucina, o paulistano arrudA, a banda pós-afrobeat paulistana Bixiga 70 (no álbum recém-lançado Corte).

Tetê também oscilou dialeticamente entre os dois extremos do pêndulo, entre temas rurais-aquáticos-errantes do irmão Geraldo Espíndola (saiba mais sobre o autor das obras-primas “Cunhataiporã”, “Vida Cigana”, 1980, e “Deixei Meu Matão”, 1986, na entrevista abaixo), sonoridades desafiadoras de vanguarda paulista (“Londrina”, 1981, de Arrigo), experimentalismo passarinheiro (os álbuns Pássaros na Garganta, de 1982, Gaiola, 1986 e Birds, de 1991), vitória pop passageira em festival da Globo (“Escrito nas Estrelas”, 1985, de Carlos Rennó Arnaldo Black), até o encontro musical com o alagoano Hermeto Pascoal em Asas do Etéreo (2014).

Sem jamais abdicar da identidade pantaneira, ambas se uniram em 1998 para o projeto Anahí, um disco pós-caipira, pós-sertanejo, pós-universitário (mas pré-sertanejo universitário) de modernização respeitosa do cancioneiro de matas, águas, cerrados e sertões, entre clássicos antes celebrizados pela dupla paulista Cascatinha & Inhana (as brasiguayas “Índia”, “Meu Primeiro Amor – Lejania” e “Anahí – Leyenda de la Flor del Ceibo”), pela fluminense Angela Maria (“Garota Solitária”) & pelo gaúcho Nelson Gonçalves (“Mágoas de Caboclo”). A apresentação no Festival de Bonito se baseia nesse trabalho, com direito a aparições especiais do espetacular e quase anônimo álbum Água dos Matos (2015, dividido por ambas com Lucina e Jerry Espíndola e resultante de uma expedição pantaneira pelo leito do rio Paraguai).

Pela própria natureza, está tudo armado para o grande encontro das irmãs Alzira & Tetê com as irmãs decanas Beth & Betinha, filhas de uruguaio criadas em Ponta Porã, rainhas pré-sertanejas do chamamé que ficaram alcunhadas “princesinhas da fronteira”. Hoje octogenárias, Beth e Betinha são as homenageadas da edição sul-mato-grossense do festival sul-mato-grossense, e surgem esfuziantes de alegria no palco de Tetê e Alzira para cantar “Boneca Cobiçada” (sucesso de 1956 na voz da dupla paulisto-mineira Palmeira & Biá) e mais um punhado de joias fronteiriças.

Das coxias, a apresentadora (e cantora e compositora paulistana e filha de Itamar) Anelis Assumpção assiste às lágrimas à pororoca musical que desagua sobre nós. O encontro quádruplo é de fato emocionante, mas oscila entre a harmonia e o choque cultural, como se o vanguardismo das Espíndola se assustasse diante do espelho do tradicionalismo das Beths: pura antropofagia hispano-indígena-portuguesa. Os estados d’alma se reconfirmam desunidos como dois estados que um dia foram um só, como dois países que em tempos imemoriais foram um continente. Tradição ou vanguarda? Urbanas ou florestais? Concreto armado ou natureza em flor? Itamar ou Inhana? Mato Grosso ou Mato Grosso do Sul? Mato Grosso ou Paraguay? Brasil ou América Hispânica? Estados Unidos do Brazil ou Brasil sob golpe de Estado?

A sensação de desarmonia harmônica deste forasteiro se consolida quando Jerry, o Espíndola caçula, brincalhão, puxa um senhor que passa pelo calçadão para apresentá-lo ao repórter desavisado. Trata-se de David Cardoso, mito da pornochanchada nacional, símbolo sexual da minha adolescência paranaense, pária do cinema brasileiro, filhote artístico antiglauberiano do paulistano acaipirado Mazzaropi, brasiguayo ruralista e ecologista, ícone da Boca do Lixo paulistana que nasceu no (e retornou ao) interior sul-mato-grossense, em Maracaju.

Conversando caoticamente com David, concluo além de tudo que o Aquífero Guarany legou ao Brasil dois de seus maiores símbolos sexuais masculinos, um mais dedicado à heterossexualidade (ele, David), outro, à antinormatividade (Ney Matogrosso). Os mistérios, que queriam se dissolver, se retransformam e se consolidam nos mais puros… mistérios. Hétero ou gay? Homem ou mulher? Índia ou branco? Africana ou europeu? Cidade ou mato grosso? Ruralismo ou ecologia? Eucalipto ou alface? Ditadura ou democracia? Casca ou seiva? Identidade ou auto-esquecimento?

Somos todos um só organismo? Ou seremos para sempre um exército de incompatibilidades mutuamente autodestrutivas?

(O jornalista viajou a convite da organização do 18º Festival de Inverno de Bonito, que cobriu despesas de transporte, hospedagem e alimentação.)

A refavela desvenda 2017

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Refavela 40, Gilberto Gil

“O filho perguntou pro pai/ onde é que tá o meu avô/ o meu avô onde é que tá/ o pai perguntou pro avô/ onde é que tá meu bisavô/ meu bisavô onde é que tá/ avô perguntou bisavô/ onde é que tá tataravô/ tataravô onde é que tá.” Por um desses lapsos no espaço-tempo, as perguntas sem resposta de “Babá Alapalá” (1977) fazem eco no aqui-e-agora do show coletivo Refavela 40, que ficou em cartaz nos Sescs Pinheiros e Itaquera de São Paulo, entre 7 e 10 de setembro de 2017.

Gilberto Gil, o autor principal da quarentona Refavela, entra no palco já na reta final do espetáculo. À sua esquerda tem a filha Nara Gil e a nora Ana Claudia Lomelino, backing vocals do combo, e o pequenino Dom Gil, seu neto, participação especialíssima durante todo o show, que vovô trolla vezes sucessivas na voz de um herói-fantasma-preto-velho capaz de fazer o garotinho correr assustado (e brincalhão) para as coxias, para voltar segundos depois. Atrás de Gil está Bem Gil, seu filho e pai de Dom. Ao redor se dispõem outros filhos da grande família MPB, como Maíra Freitas (vocalista e pianista, filha de Martinho da Vila), Moreno Veloso (vocalista, filho de Caetano), Mateus Aleluia (trompetista, filho do homônimo integrante do mítico grupo de candomblé Os Tincoãs), Domenico Lancellotti (baterista, filho do compositor de sambas e romantismos Ivor Lancellotti), Céu (vocalista, filha de Edgard B. Poças, maestro e versionista de canções infantis para A Turma do Balão Mágico nos anos 1980).

Gil canta secundado pelo filho Bem, diretor musical de "Refavela 40" - foto divulgação/Alfamor

Gil canta secundado pelo filho Bem, diretor musical de “Refavela 40″ – fotos divulgação/Alfamor

Juntos, tataravô, bisavô, avô, pai, filho e neto (além das possíveis correspondentes femininas) ligam o ritual e aniversariam Refavela como uma utopia, em parte realizada, de reencontro num só ponto de luz da música do mundo, sobretudo do mundo negro. “Aqui e Agora”, reinterpretada com ternura por Moreno, adquire conotações subterrâneas, silenciosas, mas talvez ainda mais políticas que as de 1977, quando Gil, egresso de temporadas na cadeia em 1968 (por afronta à ditadura civil-militar) e 1976 (por uso de maconha), contava cantar que “o melhor lugar do mundo é aqui e agora” inspirado pela perspectiva de um homem (preto?) aprisionado. É possível cantar que o melhor lugar do mundo é aqui e agora no Brasil que corteja o fascismo em 2017? Seja possível ou impossível, a renascença de “Aqui e Agora” e da Refavela religa sentidos no lapso de tempo entre os estados de exceção e as escravidões de 1964-68 e 2016-17. Tataravô, bisavô, avô e pai souberam o que é a privação de liberdade. Nós que hoje aqui estamos também sabemos, ainda que finjamos que não.

O mundo negro é revolvido com brilho pela superbanda composta por gente variada de menos de 7 a mais de 75 anos de idade. A utopia daquele Gil, que se consolidou de lá para cá e faz refavela na música eletrônica mundial de periferia dos tempos de agora (reggaeton, tecnobrega, funk, kuduro etc.), é o “povo chocolate e mel”, aqui no Brasil africano e indígena, de que falava a “Refavela” de 1977. Ao redor, há gente de todas as tonalidades de pele e há o embranquecimento da família Gil (senão o preteamento dos colonizadores europeus importo pelo clã baiano de que Gil hoje é buda caymmiano). “Ninguém sabe se ele é branco, se é mulato ou negro”, cantarola a certa altura Moreno, em citação ao “Xamego” (1958) do cigano pardo Luiz Gonzaga.

Com o sangue de samba rural de Martinho que lhe corre pelas artérias, Maíra canta o umbigo de Refavela chamado “Samba do Avião” (1962). Rejeitado à época pela crítica sempre refratária às antenas do tempo, o arranjo à la Banda Black Rio de Gil revestiu era central por promover um desembranquecimento do autor Tom Jobim e da verve carioca da bossa nova. O funk de James Brown, o tribalismo e o timbalismo da África negra e o reggae jamaicano desembarcavam com Gil no aeroporto marítimo do Galeão, pela via da dupla provocação de universalizar o nacionalismo do samba e empretecer o maestro soberano Antônio Brasileiro e seus filhos, futuros avós dos filhos de Carlinhos Brown.

Como em 1977, Refavela ainda explode e se estilhaça em direções infinitas, na pulsação da diáspora humana (e africana sobretudo) que “Exodus” (1977), do repertório do jamaicano Bob Marley, representa à risca na Refavela 40Refavela era e é a África de Fela Kuti King Sunny Adé (com quem Gil se reuniu na visita musical à Nigéria que originou o disco de 40 anos atrás), como era e é a Bahia negra dos afoxés Filhos de Gandhy (presente com “Patuscada de Gandhi”, a canção com que Papai Ojô assusta o netinho Dom) e Ilê Aiyê (o clássico “Que Bloco É Esse?”, com que Paulinho Camafeu mandava o branco tomar banho de piche para adquirir uma sombra de dignidade negra, e que Gil rebatizou “Ilê Ayê”). Refavela era e é funk norte-americano de James Brown, de George Clinton e do menino eterno Michael Jackson, como era e é reggae caribenho de Bob Marley, como era e é world music de Fela aos jovens da Abayomy Afrobeat Orquestra e do Tono (a banda pós-tropicalista de Bem) inseridos no supergrupo. O percussionista Thomas Harres, da Abayomy, traz ao palco o majestoso balafon, marimba africana que Gil apresentou ao Brasil em “Balafon”, na Refavela de 40 anos atrás.

A filha Nara, o neto Tom, a nora Ana - foto divulgação/Alfamor

A filha Nara, o neto Dom, a nora Ana

O repertório ampliado para compor um show inteiro é minucioso e privilegia o ano e o ideário odara de 1977. “Sarará Miolo”, lançada no disco Os Meus Amigos São um Barato, da bossa-novista Nara Leão, fala da mania de branco de ter cabelo liso já tendo cabelo loiro (“cabelo duro é preciso/ que é pra ser você crioulo”) – é de Refavela mesmo sem ser, e aqui em 2017 vem ressaltar como os cabelos afro estavam onipresentes na mente do Gil de 1977, desde os “cabelos da eternidade” de que fala “Era Nova” até a tensão subjacente entre as trancinhas afrobaianas, o black power carioca de Tim MaiaWilson Simonal e equivalentes, e o pretume bem-comportado demais (na opinião de Gil) dos sambistas cariocas, pai Martinho incluído.

Resta ausente do tributo o híbrido samba-soul Jorge Ben (Jor), propulsor indireto da Refavela tanto por conta do disco em dupla com Gil Ogum-Xangô (1975) quanto pelo individual África Brasil (1976). Se o samba-roqueiro Jorge queria ver o que ia acontecer quando Zumbi chegasse de volta em 1976, Gilberto fazia Zumbi dos Palmares acontecer em 1977 na medida do preto pobre que saltava do seu barraco para um bloco do BNH, Minha Casa Minha Vida em versão civil-militar entre-golpes. Ao cantar “Refavela” na sexta-feira 8, Gil cita como inspiração não só a Nigéria, mas também a carioca norte-americanizada Vila Kennedy, construída em 1964 pelo governador golpista Carlos Lacerda, pai disto tudo que está aqui.

Do mundo mestiço brotam as presenças simbólicas de Caetano (“Two Naira Fifty Kobo”, do disco Bicho, também resultante da excursão brasileira à Nigéria), Ney Matogrosso (o primeiro a gravar “Gaivota”, que reaparece na voz de Céu) e Dori Caymmi (filho miscigenado do paxá preto cigano indígena Dorival e arranjador da trilha sonora da série televisiva Sítio do Picapau Amarelo).

Foi Dori quem convidou Gil para compor e cantar aquela que viria se tornar a música-tema da série infantil da Globo em 1977 e encerra Refavela 40 como talvez o único hit pop de massa daquela safra nigérrima de 1977. A Refavela é mitológica a ponto de motivar o livro analítico de Maurício Barros de Castro na série O Livro do Disco (da editora Cobogó), vendido às dúzias no tabuleiro pop da Refavela 40, mas até hoje não foi assimilada pela oficialidade insistente na fórmula-fantasia do “não somos racistas”. Essa é a tensão que transforma em achado feroz a iniciativa de recuperar Refavela aos 40.

De resto, discursos supremacistas à parte, Tia Nastácia e a Taubaté do matuto paulista embranquecido Monteiro Lobato se incorporam à mitologia de diáspora negra da Refavela, e Dom Gil pula feito cabrito na despedida com o “Sítio do Picapau Amarelo”. O tempo-rei abre uma fresta no sofrimento do aqui-e-agora e a refavela desfila mais moça do que nunca, alegoria, elegia, alegria e dor.

Aldir Blanc em estado de exceção

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Aldir Blanc não é um contemporizador. Aos 71 anos, rema contra a maré contemporizadora da maioria de seus pares e faz as honras de compositor de peças colossais da música brasileira como “O Mestre-Sala dos Mares” (1974), “De Frente pro Crime”, “Corsário” (1975), “O Rancho da Goiabada” (1976),  “Tiro de Misericórdia” (1977), “Querelas do Brasil” (1978), “O Bêbado e a Equilibrista” (1979), “Da África à Sapucaí” (1986), “Catavento e Girassol” etc. etc. etc. – e fala, aberta, livre e corajosamente, sobre golpes e golpistas, estados de coisas e estados de exceção, ditabrandas e ditaduras.

Sem querer se encontrar pessoalmente, Aldir prefere o e-mail, e a conversa começa e prossegue caótica, desobediente, desaprumada – e enfeitada por tiradas tão agudas quanto as que povoam a obra poética costurada desde 1968 com parcerias musicais que fez e desfez com Sílvio da Silva Jr.Cesar Costa FilhoJoão Bosco (o quase engenheiro civil que deu vida musical perene às letras do ex-médico psiquiatra), Sueli CostaMaurício TapajósDjavanEduardo GudinMoacyr LuzGuinga (o ex-dentista cuja música exigiu versos intrincados do ex-médico), TavitoEdu Lobo, Ivan LinsCristóvão Bastos etc. etc. etc. Aos parceiros tenta dispensar tratamento mais cuidadoso, mas nem com eles chega a guardar muitas papas na língua.

Mais amoroso que nunca se mostra diante das inumeráveis intérpretes femininas que se encantaram por sua poética. O arco é amplo e inclui, em ordem mais ou menos cronológica, Clara Nunes, Maria CreuzaClaudette Soares, MaysaElis Regina (a gaúcha que elevou o carioca ao panteão dos maiores), Eliana PittmanElizeth CardosoMaria AlcinaMarleneSimoneAdemilde Fonseca, Angela MariaVanusaClementina de JesusJoyce MorenoClaudiaQuarteto em CyMarília Medalha, Nana CaymmiZizi PossiZezé Motta, MiúchaCristina BuarqueBeth CarvalhoTelma CostaElza Soares, Leila PinheiroEliana de LimaAlaíde Costa, Leny AndradeFatima GuedesElba RamalhoFafá de Belém, TitaneMaria BethâniaSandra de Sá, Angela Ro RoVânia BastosZélia DuncanClarisse GrovaDorinaRebeca Matta, Ana de HollandaRosa PassosAlcioneCéuDaniela MercuryMariana BaltarFabiana CozzaMônica SalmasoMaria Rita etc. etc. etc. Tampouco Aldir, à esquerda, mas aparentemente rebelde à correção política, abdica de agulhar um feminismo que reprovou a letra d'”O Coco do Coco” (1996) (*), feita sobre alusões sexuais explícitas em pessoa feminina. Em 2017, na voz endiabrada da cantora portuguesa Maria João, “O Coco do Coco” provavelmente não escaparia nem das feministas, nem da juventude de direita que se vê no direito de fechar exposições de arte por (supostamente) confundir denúncia de pedofilia com apologia à pedofilia.

Nas linhas abaixo, Aldir Blanc fala sobre Aldir Blanc – um bocado, mas nada perto do que as letras de Aldir Blanc já falaram, frequentemente avançadas no tempo em algumas décadas, sobre o Brasil e a condição humana dos humanos mais oprimidos pelos humanos.

2005 Vida Noturna

Pedro Alexandre Sanches: Acabou de chegar aqui em casa o disco da Maria João, que estou neste mesmo momento ouvindo (o exu caveira aparece no exato instante em que escrevo esta linha). Há pouco passou a sua voz, na introdução de “Sede e Morte”, e não paro de me perguntar que sentimentos passam por você ao ouvir este A Poesia de Aldir Blanc. Pode contar um pouco a respeito?

Aldir Blanc: É incrível, o Sesc não mandou ainda o CD para mim. Estou pressionado por vários pedidos de entrevista, mas quero dar uma resposta com o CD na mão, ao invés de falar sobre um trabalho tão corajoso da Maria João por faixas soltas recebidas por e-mail, às vezes sem a mixagem definitiva.

PAS: Pulo então essa pergunta, enquanto você não ouve o disco inteiro. Ouvindo no disco da Maria João uma nova versão de “O Coco do Coco” (1996), fiquei pensando nas canções de aspereza e de intimidade que você tem escrito em anos recentes. É bonito – e desafiador das normas – ouvir uma dama rimar “peteca” com “xereca”, falar do “ovo no cu da galinha”, mas, junto disso, cantar o sexo de uma maneira tão crua e sincera. Como você definiria a poesia da sua maturidade, tomando exemplos como esse do “O Coco do Coco”?

AB: “Coco do Coco” é um caso muito particular. A Leila Pinheiro já estava entrando em estúdio. Os caras da gravadora (a multinacional EMI) não queriam um CD dedicado ao repertório Guinga/Blanc. Diziam que ia encalhar. Chegaram a exigir que apresentássemos cerca de 30 músicas, para que o repertório pudesse ser selecionado… Mexeram com os compositores errados. Fizemos umas 30 músicas inéditas para o CD. Várias forem gravadas depois, e outras se perderam na esculhambação crônica do Guinga, o que acabou me fazendo cortar a parceria e as relações pessoais, devido à estupidez de uma resposta dele à cantora Mariana Baltar e ao Jayme Vignoli, meu amigo e parceiro, produtor da Mariana. Bom, Catavento e Girassol, graças à coragem da Leila, vendeu perto de 100 mil cópias. Até hoje, acho que maquiaram os números pra baixo só para não dar o braço a torcer. “Coco do Coco” inspira-se na belíssima tradição picaresca de músicas nordestinas, baiões, cordel, que tratam o sexo de forma escrachada – e verdadeira. Claro que algumas feministas politicamente corretas sentaram o pau e o fizeram porque se arvoram a saber uma porção de merdas, mas não conhecem picas de cultura popular. O CD da Maria João acabou de chegar. Vou ouvir e responder amanhã à primeira pergunta.

PAS: O disco da Leila é de 1996, já meio reta final do reinado absoluto das grandes gravadoras multinacionais. Você descreveu uma situação oposta à que a maioria dos artistas descrevem – eles geralmente afirmam que não há interferências das gravadoras no trabalho artístico, que trabalham em total liberdade etc. Não é assim? Não era assim antes, quando Elis Regina gravava o repertório de Aldir e João Bosco? E hoje, depois do declínio do poderio das multinacionais do disco, como é?

AB: Ninguém era louco para se meter com Elis ou Maria Bethânia, mas havia interferência, sim, e muita. Só para contar um causo: quando Fafá de Belém estourou o tema especial para a novela Tieta (“Coração do Agreste”, de Moacyr Luz/Blanc), a gravadora (a também multinacional RCA) quase pirou, porque se preparava para lançar a Fafá no mercado latino de salsas etc. As rádios, no dia seguinte à primeira excução na novela, não aguentavam mais os pedidos para tocar a música. A gravadora ficou louca de raiva com seus planos mirabolantes frustrados, mas teve que engolir. A música – o que mostra bem a burrice de certas “invenções” de produtores – foi sucesso durante quase um ano. O LP vendeu cerca de 2 milhões de cópias…

Você sabia q o primeiro LP do João Bosco (João Bosco, de 1973), aquele com capa verde do grande pintor Carlos Scliar, era com o Tamba Trio e arranjos do Luiz Eça? A RCA vetou o LP inteiro e chamaram o Rogério Duprat para refazer tudo. Tiraram uma suíte para os Arcos da Lapa de quase 12 minutos de duração, lindíssima. Deve ser gravada agora pela pela vez pela Mariana Baltar, graças a uma pesquisa de Jayme Vignolli e Rildo Hora, que acharam a gravação perdida.

PAS: Aldir, nesse sentido das interfências você diria que o desmoronamento das gravadoras foi bom para a música? Ou os mecanismos de controle se renovam por outras maneiras? E quanto à sua trajetória artística, como você avaliaria hoje o balanço entre a necessidade de resistir e continuar existindo, desde a juventude até hoje? Não deve ter sido fácil para o João Bosco (mas também para você, como co-autor de quase todas as músicas) se espremer entre a alegria de gravar um primeiro disco e as pressões de fora para dentro.

AB: Trata-se de uma resposta muito complicada, Pedro. Esse desmoronamento se deve a um outro tipo de roubalheira: a pirataria e os criminosos que vivem de gigantescas empresas de baixar downloads. Você deve ter visto a prisão, por pouco tempo, de um neozelandês tipo Geddel, a mansão inacreditável, as dezenas de carros de grife que o ladrão colecionava etc. Foi preso um tempinho, foi solto e postou debochadamente de enorme piscina. Um outro dado que posso dar: por mais discutíveis que fossem os pagamentos trimestrais das editoras ligadas às grande gravadores (já que nunca permitiram a numaração de LPs e CDs como sendo “inviável”…), os compositores sabiam que haveria o recebimentos do trimestre de vendas de direitos fonomecânicos de três em três meses. Isso era quase comemorado – e agora murchou para quantias humilhantes -, e é preciso lembrar, trimestrais! Pega-se lá e mixaria, por exemplo, R$ 2.000, mas a realidade desse pagamento e dividida por três ao mês. Dou em exemplo: expulso da Sicam (Sociedade Independente de Compositores e Autores de Música) por um simples pedido de prestação de contas nos anos 1970 – o único período em que botei quatro músicas diferentes entre as primeiras 12 colocadas -, deixei de receber os direitos autorais de execução pública dessas e de outra músicas. Mas, mesmo assim, só com os direitos das vendas dos LPs de Elis, João Bosco, Maria Alcina, Simone e MPB 4, pude sair de um quarto pinico-e-fogareiro para um apê velho, mas grande na Muda, comprado por mim, onde moro até hoje.

Faltou o comentário sobre o CD de Maria João. Acho um disco assombroso, pela ousadia, pela coragem da Maria João. Uma cantora consagrada em Portugal, adotada na África, apaixona-se pelas letras de um autor de 70 anos e lhe dedica um CD inteiro, inclusive regravando músicas que tinham gravações clássicas, de Elis, Fatima Guedes, Leila Pinheiro… Adoro o CD por essa capacidade de ousar, arriscar-se com arranjo, com o apoio de grande músicos. O resultado pra mim é belíssimo, de lavar a alma. E ainda começou minha parceria com André Mehmari, gênio total, e logo a canção (“O Sonho”) que homenageia a família Veríssimo, que todos aqui em casa amamos de paixão.

PAS: E há quem acredite que Geddel e correlatos são fenômenos exclusivamente brasileiros, não é mesmo? Aproveitando esse tema. Quando estávamos na era Lula, inúmeras vezes eu reouvi sua obra com João Bosco tendo a impressão de que vocês anteviram em 30 anos o Brasil de Lula. “Dois pra Lá, Dois pra Cá”, “Kid Cavaquinho” (1974), “O Ronco da Cuíca” (1975), “O Rancho da Goiabada”, “Incompatibilidade de Gênios”, “Miss Suéter” (1976), “Linha de Passe”, “Boca de Sapo” (1979), “Nação” (1982) ou “Jeitinho Brasileiro” (1984), só para citar alguns exemplos, narram um Brasil que resplandeceria com Lula, e que vive ainda hoje, nas caravanas dele pelo Nordeste. É um delírio meu, ou você tem essa dimensão também?

AB: Dizem que ninguém é profeta em sua própria terra, mas João e eu fomos! Veja o caso de “De Frente pro Crime” (1974). Mais de 40 anos depois, ainda retrata o Rio de Janeiro. E mais: deu dois versos para o nosso futebol: “de frente pro crime”, quando o goleiro aguarda a cobrança do pênalti, e “tá lá o corpo estendido no chão”, quando a falta é feita e derruba o jogador. Sabe o que parte da crítica da época dizia desses sambas? “João Bosco e Aldir Blanc , com suas habituais obsessões com uma violência inexistente…”. Como disse num filmete de divulgação para o próximo CD do João, gostaria de soltar todos esses críticos no Jacarezinho para uma injeção de Brasil na bunda, ciceroneados por essa peça incrível, mistura de incompetência e farsa, o ministro da defesa neocoreano Jung Jong, que fugiria para Portugal no primeiro tiro.

Gostaria de fazer um adendo à parceria com o Guinga: Ele entrou aqui em 1988, mandado pelo Raphael Rabello e pelo Paulinho Pinheiro (Paulo César Pinheiro), porque stava pensando em desistir. O violão era pouco mais que um cavaquinho, todo remendado com fita crepe. E, no entanto, que músicas saíam! Fiquei fascinado. Ele estava nervosíssimo, falando palavrões pelos cotovelos (não conheço ninguém que fale tanto palavrão). Fizemos a parceria com bons resultados, mas notei logo que havia implicâncias com palavras, cismas, e que muitas músicas eram abandonadas logo depois de feitas. Ora, para resumir, o que adianta letrar nota por nota (Guinga não musica letra) músicas que chegariam a ter 50 ou 60 versos ou mais para não serem ouvidas??? Quando estourou a crise de estupidez com Mariana Baltar e Jayme Vignolli, preferi terminar logo com a constante chateação. Foi um alívio. Sabe que entre as músicas perdidas está “Mar de Rosas”, elogiada por ninguém menos que o (Jean-Claude) Carrière, escritor ilustre, roteirista do (Luis) Buñuel? Minha mulher tem tudo organizado, mas, por azar, o computador sumiu com essa, uma das minhas maiores tristezas. Vez por outra, desesperado, reviro cadernos e papéis, mas ainda não dei sorte.

PAS: Nossa conversa está pra lá de anárquica, mas vai ser um desafio delicioso editá-la. Esse adendo do Guinga me leva à sua relação com os parceiros, que são tantos e de tamanha estatura. De Cesar Costa Filho ao Guinga, passando pelo próprio João, você não parece hesitar em romper parcerias, não sei se amizades também. É seu temperamento que é, digamos, difícil, ou eles fazem por merecer? Também gostei muito do disco de Maria João. A empatia das cantoras com suas letras é espantosa, não é? São tantas e tão variadas, de Elis a Maria Alcina, de Simone a Marlene, de Clara Nunes a Dorina, de Clementina de Jesus e Elizeth Cardoso a Vanusa e Fafá de Belém… O que explica essa empatia?

AB: Essa relação com as cantoras é uma das grandes alegrias da minha vida profissional. Sim, depois do CD pra lá de corajoso que a Dorina lançou se endividando só de músicas minhas – e agora está no Catarse para poder lançar também  o DVD -, há o CD da Maria João, e Mariana Baltar prepara um CD com a participação do grupo Água de Moringa, já que o produtor dela, Jayme Vignolli, é meu parceiro e amigo e é cavaquinista do Água. Também o marido da Mariana, é meu parceiro, o violonista Josimar. Eles vão convidar vários músicos para cada faixa, encorpando os arranjos.

PAS: Há um projeto com Mariana em curso? Envolve a suíte perdida com João Bosco?

AB: Sim, Mariana Baltar deve gravar “Os Arcos – Paixão e Morte”. Se essas três lindas homenagens, quase simultâneas, não me matarem, nem preciso fazer novos exames… Por trás da pose, sou um tremendo chorão. Às vezes, um neto telefona de outro estado e minha mulher tem que tirar o telefone da minha mão e dizer: “Peraí um pouco! Deixa ele acabar de chorar!”. E é assim com música também.

Sobre histórias com parceiros, prefiro não falar. Impossível falar do Guinga sem entrar em detalhes terríveis. (O jornalista) Hugo Sukman salvou a carreira do Guinga ao não publicar as monstruosidades que ele disse sobre outros grandes compositores. Com o Bosco, Cristóvão Bastos, Jayminho, Moyséis Marques e muitos outros, tudo joia. Sobre Costa F. não posso falar por acordo judicial. E por opção minha, já que mortos não podem se defender, não falo sobre o MAU, o Movimento Artístico Universitário.

PAS: Puxa, minha próxima pergunta era sobre o MAU, então nem vou perguntar… Nem sobre se você viu o filme sobre Luiz Gonzaga e Gonzaguinha, se gostou etc. Mas está para sair disco novo do João Bosco… Terá parcerias novas?

AB: Tem uma parceria nova que acho da maior importância, o samba “Duro na Queda”. Começa com um clima sombrio dos nos sambas de antes e se abre, como se a Esperança Equilibrista se recusasse a cair.

PAS: Você não acha que esse Brasil suburbano teu e do João, nunca frequentado abertamente pelas nossas chamadas elites, se revelou e se tornou inescondível (desculpe o palavrão haha) com os governos progressistas deste início de século? Como você mesmo explícita, talvez fosse mais fácil negar a existência da violência de “De Frente pro Crime” quando ela não explodia na nossa cara do modo como explode hoje… O mesmo dá pra dizer dos pais de santos, orixás, camelôs, boias frias, misses suéter etc etc que povoam tão lindamente teu imaginário. De onde e por que brota esse imaginário, Aldir? E, indo mais direitamente agora à política, onde e como fica agora essa população tua (e do Brasil), com o avanço de Michel Temer e a ampliação do estado de exceção?

AB: O que mais me revolta, Pedro, é que esse Brasil sempre esteve na cara de todos, só que aparece maquiado até hoje. Estou agora, a pedido de filhas, procurando dados sobre dois massacres na Alta Amazônia. Ocorreram, aí pelo sábado passado, muitos mortos por garimpeiros atiçados por um big boss(ta) ruralista. Sabem quem é. E daí? Ninguém vai preso. Não há notícia desses massacres recentes nos jornais, tevês, blogs. Um escândalo. Quanto ao Temereca, é o maior criminoso e entreguista do país! Sou contra a pena de morte, mas quando vejo o que esse merda está fazendo fico em dúvida se não seria melhor julgá-lo com rigor, direito amplo de defesa, mas com fuzilamento incluído na pena. Há muitos anos defendo que esse tipo de criminoso mata sem parar. Vi, trabalhando como médico, crianças morrerem porque as verbas para esquistosomose tinham sido roubadas. Elas entravam num rio considerado “limpo” e pegavam a doença. Institucionalmente, Temeroso é muito pior que Marcola e Fernandinho Beira-Mar juntos.

PAS: Na tarefa prazeirosa de revisitar sua obra para entrevistá-lo, me deparo com Maria Alcina cantando, em 2014, uma parceria com João chamada “O Chefão”, que salvo vacilo meu tinha lançada pela Marlene em 1974. Fez sentido ouvir Alcina cantando, antes mesmo de Dilma Rousseff se reeleger e ser trocada por Temer, sobre ter “as janelas sempre bem fechadas contra o perigo de um golpe”.  A letra fala de um golpe de ar, mas me traz duas reflexões: que já se podia falar de golpe (de ar) dez anos depois do golpe de 1964 (podia mesmo?), e que, incrivelmente, 53 anos depois daquilo tudo, estamos novamente sob golpe de estado. Como testemunha das duas situações históricas e autor de “O Bêbado e a Equilibrista” (1979), qual é a tua percepção sobre as semelhanças e diferenças entre 1964 e 2016? Você tem a sensação de estar vivendo tudo outra vez, ou são experiências distintas?

AB: Em um dos romances policiais do (espanhol ManuelVázquez Montalbán, se não me engano aquele em que o magnífico escritor devasta a Argentina (conheci o escritor no Rio, o entrevistei junto com o Paulo Roberto Pires, ou melhor, fiz duas perguntas enquanto o Pires o entrevistava de fato e sofri muito quando morreu; ninguém merece morrer no aeroporto, na hora de voltar pra casa), uma deslumbrante mulher, e é argentina, diz algo como: “Eles estão aí, esperando para nos matar de novo”. E isso num país onde um dos ditadores militares morreu na cadeia. Aqui ficaram todos os torturadores (crime que não prescreve nunca) soltinhos da silva, conspirando. O golpe voltou, um golpe constitucional. Isso existe. A Constituição pode abrir frestas para vários tipos de golpes, e só babacas dizem “se está na Constituição, não é golpe!”. Vão se fifar, burros – ou coniventes! O que vi de palhaço, que pegava jabá, era corrupto até a alma, considerando julgamentos de pedaladas “técnicas e corretas”, sem levar em consideração que Tribunardis levava bola quando parlamentável, Anastasia é corrupto, Cunha já está com a mão na grade, sem falar da Dra. Janaraca, pelo amor dos meus netinhos, sejam golpistas menos cínicos e safados!

PAS: Nesta semana já tivemos cancelamento de exposição de arte promovida por banco espanhol, supostamente por afrontar “a moral e os bons costumes”. Fiquei pensando quantas letras suas, especialmente as mais contemporâneas, poderiam caber nessa sanha repressora. Você acha que podemos voltar a uma treva comparável à dos anos 1970? Acredita que estamos numa ditadura, ou sob perigo de entrar numa?

AB: Bom, Pedro, sociólogos, historiadores, professores e artistas (como o imenso Raduan Nassar) mais importantes do que eu já escreveram que estamos num estado de exceção. Marun Maromba é o “novo relator” para barrar qualquer coisa contra Temereca, embora tenha recebido propina -assim como o presifraude – daquilo que vai “relatar”. Estamos vivendo uma ditadura com luvas de pelica (fedendo a fezes): tudo que se referir aos ladrões do Centrão e ao presidrácula será blindado. Isso não é democracia. E o Supremo, aquele do Teori que poderia tomar as rédeas, é incrivelmente frouxo. A Dra. Carminha só fala para proteger os seus. A Cega está com a venda erguida num olho só e vê o que lhe convém. Quero ver como farão para manter Joesley preso e livrarem a própria cara, já q estão todos – Janot, Temer, Gilmar, Meirelles… – no mesmo iate afundando.

PAS:  Queria perguntar sobre sua outra profissão, por dois flancos. Primeiro, sobre o papelão de parte da sua ex-categoria profissional (posso tratar assim?) em relação aos médicos cubanos, ao Mais Médicos, aos desrespeitos ao fundamento da medicina que é o de ajudar quem está precisando de ajuda. Segundo, queria saber o que há do psiquiatra nas suas letras, sejam as do jovem Aldir ou as de agora. Apenas divagando, a propósito, por que será que tantos médicos viram músicos?

AB: Começando pelo fim: acho que pode ser porque vemos tantas coisas horrorosas que procuramos um pouco de thleza, consolo, sei lá, em outra área – embora devo também dizer que uma de minha maiores honras é ter recebido do CFM a Comenda Moacyr Scliar por serviços prestados à medicina e às artes. Eu vi de tudo, Pedro, de tudo. Biópsias dolorosas feitas sem necessidade para engrossar a documentação de casos a serem apresentados no exterior, esparadrapo fechando “curativo espontâneo” onde deveriam ter sido dados uns oito pontos porque estava na hora da noturna dos cavalinhos… Qualquer médico tem muitas histórias assim pra contar, mas também vi muito heroísmo e dedicação.

PAS: Gostaria de ouvir você falar sobre suas letras, uma por uma, de cabo a rabo. Como infelizmente não é possível, me atrevo a pedir um comentário seu sobre duas delas. Uma, porque talvez seja minha mais amada (junto com “Tiro de Misericórdia”), é “O Rancho da Goiabada”. A outra é “Falso Brilhante”, por conta também da tensão que houve entre Elis/”Falso Brilhante” e Maria Bethânia/”Diamante Verdadeiro”.

AB: Rancho da Goiabada foi MUITO atacado, inclusive por babacas ortodoxos q diziam q b[oia-fria quer terra e não mulata ou fogão-jacaré. Foi um choque pra mim e João na época esses ataques – mas a música está viva até hoje. Quanto à segunda, se eu não estiver esclerosando, desconheço qq tensão entre Elis e Bethânia, Falso Brilhante/ Diamante Verdadeiro. Nunca ouvi falkar nisso. Fizemos “Falso Brilhante” p/ homenagear o pai do João, o excelente Seu Daniel, q era dublê de vendedor de seguros e mascate pelo interior de Minas, c/ brinquedos do tipo descrito na mala.

(*) como me alertou posteriormente o colega jornalista Mauro Ferreira, existe uma gravação de “O Coco do Coco” anterior à de Leila Pinheiro, de 1996; data de 1995, no disco Grande Tempo, de Fatima Guedes.

(Leia em CartaCapital a reportagem resultante desta entrevista.)

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